sábado, 30 de dezembro de 2017

MARTINS, Dr. António Pedro da Silva

Dr. António Pedro da Silva Martins

Poucos se lembrarão hoje deste médico, natural de Portimão, que alcançou grande prestígio em Lisboa, onde teve reputação de proficiente, bondoso e solidário com os desafortunados da vida. Chamaram-lhe, como aliás acontecia com muitos outros, “o médico dos pobres”, por exercer a clínica de forma graciosa e com a generosidade de ainda lhes oferecer os medicamentos. Era assim, de carácter pródigo e fraterno, a que acrescia uma personalidade afectuosa, cordial e filantrópica.
Tinha sempre uma palavra de conforto e, sobretudo, de esperança para com os seus doentes, que o procuravam de todo o país, atraídos pela sua fama de competência e bondade. Mas era também franco e leal, enérgico e decidido, quando precisava de tomar medidas urgentes, imprescindíveis e necessárias ao sucesso do seu múnus profissional. Na sua mente corria sempre o ideal de servir os fracos e os desprotegidos, e talvez por isso nem sempre fosse bem compreendido pelos seus pares. Aos jovens costumava dizer que a liberdade só podia alcançar-se através da educação, da perseverança e dedicação ao trabalho, isto é, da instrução académica e da competência profissional. E disso fez o seu lema de vida.
Nasceu em 1893, na então Vila Nova de Portimão, onde após a escolarização básica e secundária, transitou para o Liceu de Faro, em cuja cidade viveu e sentiu os conturbados tempos da implantação da República. Seguiu depois para a Universidade de Lisboa, onde se licenciou em Medicina com distinção. Aí fixou residência e abriu depois consultório, na esquina da Rua do Salitre para a Praça da Brasil.
Ainda jovem aderiu ao Partido Republicano Português, filiando-se depois no Partido Democrático do Dr. Afonso Costa, cujas ideias e propostas políticas se coadunavam com o seu espírito humanista de democrata interventivo. Talvez pela sua refulgente inteligência ou pelo seu activismo social, tivesse o nome chegado aos ouvidos do Dr. Leonardo Coimbra, um homem do norte, franco e leal, enérgico e empreendedor, cujas ideias revolucionárias e notável sucesso como filósofo e literato, justificaram a sua ascensão para sobraçar, por duas vezes, em dois ministérios distintos, a pasta da Instrução Pública. O último dos elencos a que deu o seu contributo político, foi em 1923, no 37º governo da República (7-12-1922 a 15-11-1923), liderado pelo célebre António Maria da Silva, fundador da Carbonária e Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano. O honrado, mas efémero, ministro da Instrução, Leonardo Coimbra, chamou ao seu serviço, na qualidade de secretário particular, o jovem médico Dr. António Pedro da Silva Martins, que infelizmente não chegou a aquecer o lugar, por à imagem e semelhança da vida governativa republicana, não ter durado o seu ministério senão algumas semanas. Em todo o caso, daí terá nascido uma amizade que perdurou até à morte prematura daquele que foi um dos maiores intelectuais do século vinte. Lembro que da iniciativa de Leonardo Coimbra que surgiram as Escolas Primárias Superiores, destinadas à formação de professores; recordo que foi ele quem reformou a Biblioteca Nacional; quem fundou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde foi professor e director; quem congregou o cenáculo intelectual da «Nova Seara» e da «Renascença Portuguesa», cujo órgão literária «A Águia» seria das revistas de maior sucesso no seu tempo; lembro, por fim, que foi ele quem fundou as Universidades Populares, que por todo o país levaram as luzes da ilustração aos cidadãos anónimos da classe operária.
A amizade com Leonardo Coimbra fez com que Silva Martins aceitasse o seu convite para leccionar nas antigas Escolas Primárias Superiores, depois designadas como Escolas do Magistério Primário, mantendo-se ligado ao ensino, como médico escolar, até se reformar do funcionalismo público no Ministério da Educação.
Vila Nova de Portimão, zona portuária, em 1914
Nunca esqueceu a sua terra natal, onde vinha com frequência visitar familiares e passar férias na Rocha, sendo essa a razão por que aceitou dirigir o Hospital da Misericórdia de Portimão, durante alguns meses, creio que no início da década de cinquenta do século passado.
Na sua casa da Rua do Salitre, em Lisboa, recebia doentes a toda a hora, sem qualquer tipo de discriminação, social ou económica, sempre com aquele espírito de missão humanitária que os verdadeiros discípulos de Hipócrates sabem desenvolver em prol dos desafortunados.

Faleceu em Lisboa, no dia 27 de Outubro de 1952, com 59 anos de idade, deixando viúva Dª Adelaide Augusta Monteiro da Silva Saturnino Martins, senhora de preclaras qualidade morais que sempre muito de contristava com o facto de não lhe ter dado a felicidade da descendência. Era irmão do prestigiado comerciante em Portimão José Tadeu da Silva Martins, casado com Isabel Cabrita Tadeu Martins, e tio de Maria de Lurdes Tadeu de Almeida Henriques, casada com o Capitão João Afonso Henriques; de Maria José Tadeu de Almeida Figueiredo, casada com o Tenente Josefeth Monteiro de Figueiredo; e de António Pedro Tadeu de Almeida Martins, à época ainda aluno do Instituto Industrial de Lisboa.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Um belo soneto místico de Cândido Guerreiro


Entre os mais consagrados poetas do Algarve assume particular relevo a obra lírica de Cândido Guerreiro, cujo aspecto físico de místico ancião, com longas barbas brancas, conferiam-lhe o sagrado halo bíblico de um velho profeta. Ainda hoje respeitamos a sua memória, e lembramos com eterna saudade a sua inspiração de aedo latino, que cantou com invejável beleza a mensagem de Deus, a primazia do Amor e da Virtude, a suprema grandeza da Pátria, os desígnios do Homem e da Família, a hegemonia da Estética e a prevalência do Belo e da Perfeição, na figura tutelar da mulher e da mãe.
Cândido Guerreiro, aos 80 anos de idade
De todos são conhecidas as suas humildes origens, na serrenha aldeia de Alte, em cujas fontes bebeu muita da sua inspiração poética e do seu refulgente génio criativo, transmitido à luz da estampa nos mais belos sonetos de que se pode ufanar a lírica algarvia. A sua obra assenta na trindade lírica do Amor, como valor supremo da existência humana, na transfiguração da vida através do mistério da Morte, e na eternidade de Deus. Não houve na nossa poética contemporânea um emitente da palavra divina com tão genial inspiração como Cândido Guerreiro, sem todavia cair na singeleza lamechas do beato que faz da poesia uma espécie de oração hipócrita do fanático devoto. Não, o poeta Cândido Guerreiro nunca teve uma postura cívica que se pudesse dizer comprometida com a religião ou com a Igreja. No dealbar da República chegou mesmo a protagonizar rebarbativas polémicas e a sustentar infelizes diatribes com o clero louletano. Foram episódios desagradáveis que encheram as colunas dos periódicos da época, e dos quais julgo que nenhuma das partes saiu incólume. O próprio poeta a eles se haveria de referir, mais tarde, como arrebatamentos do espírito republicano – excessos que o tempo justificava, mas que com o avançar da idade lhe suscitavam um certo constrangimento, a par de um intrínseco arrependimento.
Cândido Guerreiro foi um fecundo e vibrante idealista que amava a Liberdade, julgando nela personificados os supremos ideais da República. Enganou-se, ou melhor, foi vítima das circunstâncias da vida e do tempo, que transformaram as quimeras da República numa panaceia infundida no embuste e na ilusão.
Apesar da sua liberalidade política, e do seu republicanismo ideológico, Cândido Guerreiro foi, acima de tudo, um poeta, que deixava transparecer nos seus versos a personalidade de um homem crente, pleno de fé e de espírito religioso. Os sonetos de Cândido Guerreiro, na sua pluridiversidade temática, exaltam o Amor, a Mulher, o Algarve, Deus, e a Morte. Todavia, a maioria dos seus belos sonetos evidenciam um profundo misticismo, um indisfarçável espírito religioso. A figura imaculada da mulher, a divindade feminina e a Virgem Maria, são uma contante presença nos seus versos. O mesmo acontece nos poemas dirigidos à divina corte do reino dos céus, que glorifica a hagiografia da fé católica, com magistrais sonetos, que poderiam considerar-se orações religiosas, para honra e graça dos nossos santos mais populares, como Stº António, S. Vicente, S. Tomás de Aquino, S. Lourenço, S. Tiago ou até mesmo a nossa Rainha Santa Isabel, de tão grata memória para os pobres e desvalidos.
É nesse espírito místico, religioso, crente e devoto que se inscreve este soneto, «O Cipreste», oferecido pela mão do próprio poeta ao seu amigo Dr. Amadeu Fereira d’Almeida, embaixador, escritor, colecionador de arte e mecenas das letras pátrias, no qual resplandece o simbolismo da árvore que homenageia no campo de batalha a glória dos heróis, e no campo santo a saudade dos vivos pelos seus entes queridos.
O remate deste soneto relembra a perenidade da vida face à certeza da morte, sem deixar de iluminar a escuridão do Fim com a luz da Esperança, que há-de refulgir no dia da Ressurreição, abrindo princípio a uma diferente forma de existência.
Ouçamos então este belo soneto de Cândido Guerreiro, um louvor à esperança e uma perseverante afirmação da fé religiosa na redenção da vida humana.

O Cipreste

Eilo: milagre d’uma sepultura
Alevantou aos ares a folhagem
E é agora o Monarca da paisagem,
O Senhor da Montanha e da lonjura.

Aponta para o céu: nesta mensagem,
Nesta oração da terra para a altura,
Homens ou aves: é a mão segura
Que vos indica o rumo da viagem.

E a humana argila, abscôndita e defunta
Em pirâmide verde convertida,
Em verde chama enorme de lucerna,

Exclamação e súplica, pergunta:
- Quando serei eu luz n prometida
Ressurreição da Carne e Vida Eterna?



quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

CRUZ, José Nunes da

Ambulância dos Bombeiros da Cruz Lusa de Faro
Funcionário da Junta Autónoma das Estradas, natural de Lisboa, faleceu a 10-5-1953, em Faro, com 69 anos de idade.
Veio para o Algarve no exercício do seu múnus profissional e fixou residência em Faro por volta de 1923, tornando-se num cidadão muito apreciado pelas suas qualidades de trabalho e igualmente respeitado pela sua nobreza de carácter, lhaneza de trato e esmerada educação.
Muito preocupado com as questões de solidariedade social, fundou a Associação dos Bombeiros Voluntários da Cruz Lusa, da qual foi durante largos anos esforçado comandante, sacrificando em benefício dos outros a sua disponibilidade e muitos dos seus bens.
Em reconhecimento da sua dedicação ao bem comum a edilidade farense atribuiu o seu nome a uma das artérias da cidade.
Carro da Escada Magirus dos Bombeiros de Faro
Foi casado com D. Maria Luísa Correia Nunes da Cruz, de quem teve cinco filhos: Maria José Correia Nunes da Cruz Seruca, casada com Lister Morgado Seruca, que foi um dedicado funcionário da CUF, então residente no Barreiro; Maria Luísa Correia Nunes da Cruz de Castro, casada com Fernando Marques de Castro, secretário da circunscrição do Chinde, na antiga província do Zambeze em Moçambique, depois transferido para a cidade do Porto; e Carolina Correia Nunes da Cruz, António Correia Nunes da Cruz, ambos alunos do Liceu de Faro, e José Correia Nunes da Cruz, à época aluno do Instituto Superior Técnico.
Ao seu funeral compareceram representantes das principais corporações de Bombeiros do país, ficando o féretro de José Nunes da Cruz depositado no talhão dos Soldados da Paz no Cemitério da Esperança, em Faro.


quarta-feira, 7 de junho de 2017

A minha homenagem a Pete Seeger, e à música Folk

Em 19 de Maio de 2014 escrevi no Facebook uma breve evocação de um dos mais acérrimos defensores da liberdade e da igualdade de direitos nos EUA, Pete Seeger, que com seu inseparável banjo cantou, declamou poesia, discursou e comocionou os que escutavam a sua mensagem humanista. Muitas vezes foi insultado, agredido e impedido de poder comunicar a simples mensagem de que todos os homens são iguais, qualquer que seja a sua raça, credo ou nacionalidade. Viveu mais de noventa anos, sempre insatisfeito com a falta de solidariedade e de compromisso global com a paz. Faleceu a 27 de Janeiro de 2014.
Transcrevo agora o que sobre ele escrevi no Facebook, para que fique eternamente lembrado no meu blogue.
Nas ocupações da vida, que nos absorvem a alma, deixei passar em claro a notícia da morte Pete Seeger, aquele que foi talvez o pai da música Folk americana. 
Acima de tudo, Pete Seeger foi um grande democrata e um incansável defensor dos direitos humanos. Lembro-me das suas pacíficas campanhas contra a guerra no Vietname e das repercussões que isso teve nos jovens europeus da minha geração.
Apesar da minha paixão por tudo o que é genuinamente português, confesso-me um admirador incondicional da musica Folk, sobretudo da música de Pete Seeger e dos acordes do seu Banjo, nomeadamente quando nele se fazem sentir as influências europeias do folclore irlandês e escocês. 
Quando eu nasci já Pete Seeger lutava há muito pelos direitos das minorias raciais nos EUA e pela implementação plena da democracia no seu país. Por isso foi preso, várias vezes, suscitando enorme escândalo no país que se considera o berço da democracia moderna. Usou a música Folk para divulgar a sua mensagem de liberdade e de fraternidade para toda a humanidade. Essa batalha não foi ainda ganha e Pete Seeger acabou por deixar este mundo, aos 94 anos de idade, na passado dia 27 de Janeiro, com o travo amargo de quem tinha ainda muito para fazer, muito para lutar e muito de bom para oferecer à humanidade.
Ao longo da vida coleccionou inúmeros êxitos, que lhe deram fama, glória e fumos de eternidade. De entre todas as suas canções, aqui vos deixo uma que foi um êxito na voz de Bob Dylan e de Joan Baez. O video que vamos ouvir foi feito muito próximo da sua morte, no meio das crianças que tanto amava, numa espécie de jamboree da juventude. A canção intitula-se "Forever Young" e, no fim, podem ainda ouvir os inconfundíveis acordes do seu tradicional Banjo. Desfrutem da belíssima mensagem filosófico-poética desta canção que, apesar da idade de Pete Seeger, consegue-se discernir na sua plenitude. Espero que se comovam (como eu me comovi) com esta simbiose entre a velhice e a juventude, numa esperançosa mistura da sabedoria com a inocência.

Aqui vos deixo o poema da autoria de Bob Dylan não sua versão original. Na sua singeleza é absolutamente magistral.


May God bless and keep you always
May your wishes all come true
And let others do for you
May you always do for others
And climb on every rung
May you build a ladder to the stars May you stay forever young.
May you always know the truth
May you grow up to be righteous May you grow up to be true And see the lights surrounding you
Forever young, forever young
May you always be courageous Stand upright and be strong And may you stay forever young. May you stay forever young.
When the winds of changes shift
May your hands always be busy May your feet always be swift May you have a strong foundation May your heart always be joyful
May you stay forever young.
May your song always be sung And may you stay forever young.
Forever young, forever young

https://youtu.be/Ezyd40kJFq0


segunda-feira, 8 de maio de 2017

Uma figura do Iberismo, cônsul de Espanha em Faro

Panorâmica da antiga doca de Faro na década de vinte
Uma das figuras que permanece ignorada na cultura algarvia e até mesmo nas relações transfronteiriças luso-espanholas, é a de D. Álvaro Seminário, que nos princípios da sua carreira diplomática, precisamente em 1923-1924, exerceu na cidade de Faro as funções de Cônsul de Espanha. Durante essa curta passagem deixou no seio da elite farense um perfume de elegância, de donjuanismo, muito raro e invejável, numa sociedade ronceira e provinciana.
Em todo o caso, deixou sólidas amizades e uma grande admiração entre os mais recatados e ilustres farenses, para não falar já dos corações dardejados pelo traiçoeiro cupido, abandonados à pressa por uma retirada estratégica. 
Jardim Manuel Bivar e praça de táxis de Faro, anos vinte
Elegante e afável no trato, cativava facilmente amizades, até pela sua sólida cultura, aliás demonstrada no livro de memórias e sensações que publicou com o título de «España y Portugal - Incitaciones a una política de acercamiento espiritual», publicado pela famosa editora Espasa-Calpe, em 1940. Nesse livro deu relevo ao amor que sentia pelas duas pátrias que trazia no coração, advogando com sincera convicção a necessidade de estreitamento das relações políticas, económicas e culturais entre os dois países irmãos, dando como exemplo as opiniões de vários outros escritores, que haviam anteriormente sugerido um abatimento das fronteiras físicas em prol duma união intelectual da velha Ibéria. Essa ideia não era nova, pois já havia sido propalada nos anos setenta da centúria de Oitocentos, tendo então entre nós como principais defensores os mais conceituados intelectuais republicanos e socialistas, de entre os quais destaco Antero de Quental, Teófilo Braga, Júlio de Matos e Oliveira Martins.
Capa da obra de Álvaro Seminário
Na sociedade farense dos loucos anos vinte, Álvaro Seminário marcou posição de relevo, não só pela sua admirável educação como também pela sua cativante cavaqueira no Clube Farense, na Havaneza e nos cafés mais concorridos da cidade, onde fazia amigos com extrema facilidade. Pode mesmo dizer-se que foi um dos cônsules espanhóis que mais simpatias soube arrecadar na burguesa cidade de Faro.
Distinto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Espanha, não admira que fosse galardoado com numerosas condecorações, de entre as quais assume particular destaque a Comenda da Ordem de Cristo com que o governo português o soube premiar pela leal amizade que dedicou ao nosso país.
Álvaro Seminário Martinez, de seu nome completo, após uma brilhante carreira diplomática, retirou-se da política no pós-guerra, na qualidade de Ministro plenipotenciário de Espanha para a América Latina, vindo a falecer na sua residência em Madrid, a 30-12-1950.
Embora não tivesse ocupado o melhor do seu tempo na escrita, sei que da sua autoria se publicaram ainda os seguintes livros:
Cuadernos de Derecho Consular, 1932; El consul de España en América, 1935; El doctor James Brown Scott y los teólogos españoles de los siglos XVI y XVII, 1946 [conferencia pronunciada por Álvaro Seminario, Ministro Plenipotenciario, director de política de América].

domingo, 30 de abril de 2017

Frei António de Moncarapacho

Iluminura das Cantigas de Santa Maria
da autoria de Afonso X, o Sábio
Pelo nome presumo que este frade seria natural da aldeia de Moncarapacho. Não tenho a certeza da ordem a que pertencia, mas certamente era Franciscano da Província da Piedade, como acontecia à maioria dos religiosos provenientes das terras meridionais, isto é, situadas para além do rio Tejo. Já agora esclareço que a Ordem dos Frades Menores, também conhecida por Ordem de S. Francisco, ou simplesmente dos Franciscanos, foi fundada em 1209, em Assis, Itália, introduzindo-se em Portugal pouco depois, tendo como principal conversão a do nosso mais famoso taumaturgo Santo António de Lisboa. Em 1427 foi criada a Província de Portugal da Ordem Franciscana, mas daí até à sua extinção em 1834 passou por diversas cisões e dissidências, dispersando-se os seus milhares de religiosos em conventos e conventinhos espalhados por todo o país.
Mas tudo isto vinha a propósito de Frei António de Moncarapacho cuja existência ressaltou ao meu conhecimento através de uma notícia inserta na «Gazeta de Lisboa», onde consta que no dia 28 de Dezembro de 1828 o Corpo de Voluntários Realistas da Vila de Moura (comarca de Beja), em conjugação com a Câmara mandaram cantar um Te Deum na Igreja Matriz “em acção de Graças ao Todo Poderoso pelo grande benefício que a sua prodigiosa mão liberalizou á nação portugueza pelas completas melhoras de Sua Magestade”, tendo o padre Frei António de Moncarapacho nessa altura proferido um “elegante discurso”.(1)
Esta «acção de Graças pelas melhoras de Sua Magestade» respeita ao acidente que o Rei D. Miguel teve no dia 9 de Novembro de 1828, quando a galope num trem puxado por uma parelha de cavalos malhados caiu por uma ribanceira abaixo tendo uma das rodas passado por cima das pernas, de que resultou uma perigosa fractura. Diz-se que foi por esse facto que a partir de então os liberais, considerados como os principais inimigos do Trono e do Altar, passaram a ter o epíteto de "malhados". O país cobriu-se de pesar e de lamento pelo sucedido, a tal ponto que se fizeram novenas e promessas aos santos e oragos de maior devoção popular. A Igreja da Senhora da Rocha, na freguesia de Carnaxide, actual concelho de Oeiras, tinha fama de grandes milagres, razão pela qual o Rei com suas irmãs ali se dirigiu, em romaria popular. Diz-se que com fé e humildade implorou à Virgem uma cura rápida, o que de facto aconteceu. Por causa disso, o culto da S.ª da Rocha cresceu exponencialmente, tornando-se num símbolo do absolutismo. As modinhas do «Rei chegou» passaram a concluir-se na seguinte quadra:
Altar barroco de S.Francisco d'Assis
 na Igreja de que é patrono em Faro.
                               
                                D. Miguel é bonito,
                                É bonito e bem feito.
                               Quebrou as pernas,
                               Ficou sem defeito.

No Algarve até 1834, quando o primeiro governo liberal, pela mão do ministro Joaquim António Aguiar – que por isso ganhou o epíteto de “mata-frades – promulgou a lei da extinção dos conventos e das ordens religiosas, existiam nesta região dezasseis conventos e casas religiosas da Ordem Franciscana. Já agora acrescento que se distribuíam do seguinte modo: dois eram de frades Claustrais, estabelecidos em Tavira e Loulé; três eram de frades Observantes, em Tavira, Faro e Lagoa; sete eram de frades da “Mais Estrita Observância”, que se dispersavam desde o Cabo de São Vicente até Tavira; dois eram conventos femininos, um de Santa Clara, em Faro, e outro de freiras Concepcionistas Franciscanas em Loulé; por fim, há que registar ainda dois conventos do terceiro ramo da Ordem Franciscana, em Silves e em Monchique, que se dedicavam à instrução feminina. Foi aliás deste último que vieram as religiosas que tomaram conta, já no séc. XX, do Colégio de St.º António do Alto, em Faro, que ainda existe.
Resta-me acrescentar que sobre o Frei António de Moncarapacho nada mais conheço. Presumo que como miguelista deve ter sido alvo de perseguições políticas após a Convenção de Évora Monte. Talvez tenha então recolhido à protecção de alguma família de posses, ficando ignorado numa qualquer herdade desse imenso Alentejo.
________________________
(1) [«Gazeta de Lisboa», nº 2, de 2-1-1829, p. 8.]. 

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Efemérides algarvias – dia 22 Abril


José Dias Sancho, escritor, e poeta
1898 – Nasce em São Brás de Alportel, freguesia do concelho de Faro, o escritor José Dias Sancho, um dos mais polémicos e geniais da década de vinte, no século passado, por ter visado com fortes críticas as consagradas obras de Júlio Dantas e de Albino Forjaz de Sampaio, na época verdadeiros príncipes da literatura portuguesa. Nos dois volumes da obra «Ídolos de Barro», amesquinha de forma injusta e desleal aqueles geniais literatos, numa estratégia cobarde e soez, muito comum entre os jovens, que por não serem conhecidos pretendiam concitar a atenção do público, dizendo mal dos escritores mais famosos do seu tempo. Essa estratégia resultou apenas em descrédito da sua própria obra, que não chegou longe, em parte porque não houve tempo para amadurecer, crescer e convencer a crítica. Com efeito, a vida de José Dias Sancho cessaria pouco depois, de forma abrupta e inesperada, ainda na flor da juventude. Um desfecho cruel para uma vida que se adivinhava plena de realizações e de sucesso. Acerca deste escritor sambrasense leia-se o capítulo correspondente à evocação da sua vida e obra no meu livro, Confidências e Revelações de Mário Lyster Franco, pp. 153-159.
José Joaquim Coelho de Carvalho
1911 – Estreia-se no Teatro Nacional a peça «A infelicidade Legal» do famoso escritor Coelho de Carvalho. Nascido em 1855, na cidade de Tavira, Joaquim José Coelho de Carvalho Júnior, foi uma das figuras mais ilustres da cultura e da política do seu tempo. Da sua vasta biografia destaco o facto de ter sido reitor da Universidade de Coimbra (1919-21), Presidente da Academia das Ciências, Cônsul de Portugal no Brasil, em Xangai, China, e aqui ao lado, em Huelva, na vizinha Andaluzia, que ele tanto amava. Foi também dramaturgo, poeta, escritor, cronista…, enfim uma infinidade de actividades de que não existe hoje nenhuma figura, no Algarve, que se lhe possa comparar. O mapa de Angola, na zona nordeste, é todo da sua autoria, cuja realização prática quase suscitou uma guerra da França e da Bélgica contra Portugal, porque o nosso Coelho de Carvalho fartou-se de lhes roubar território colonial… de uma forma legal. Morreu quase octogenário, em 18-07-1934, na sua residência, que constituía o edifício histórico do Forte de São João do Arade, em Ferragudo, por ele arrematado em hasta pública ao Ministério da Marinha. Anos antes, ainda na vigência da República, o velho "Castelão do Arade", como poeticamente o tratavam os amigos e admiradores, foi preso sob a acusação, real e verdadeira, de ter sido o autor material e o instigador político de uma revolução, realizada de forma pacífica e sem derramamento de sangue, através do «Diário da República»!!! O elenco político, nomeado e oficialmente publicado no órgão oficial do regime, ficou conhecido como o "governo dos poetas", a que alguns jornalistas bem humorados chamaram "ministros do reumático".

1980 – Fundou-se a Associação de Voleibol de Faro, modalidade que até então era quase em exclusivo da responsabilidade do desporto escolar, cuja orientação e prática competitiva dependeu durante muitos anos da antiga «Mocidade Portuguesa».

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Efemérides algarvias – dia 21 Abril


Gravura antiga, presumo que do sec. XVII ou
XVIII, representando a antiga cidade de Tavira
1539 – O rei D. João II, anuindo a um requerimento do povo de Tavira, proibiu os alcaides-mores de fazerem parte da governação daquela cidade, isto é da vereação ou de qualquer outro cargo autárquico. Determinava também que se elegessem dois representantes, dos mesteres (artesãos e comerciantes) ou dos mecânicos (mareantes, pescadores, oleiros, ferreiros, etc), para fazerem parte da vereação. O ojectivo era evitar a concentração do poder externo, dando representação às actividades económicas locais. Os produtores manuais e mecânicos representavam a burguesia tavirense, rivalizavam com os “ricos homens” ou “homens bons”, proprietários rurais e urbanos que desempenhavam normalmente a administração pública. O facto de serem sempre os mesmos, acabaria por dar origem à fidalguia dos concelhos, que era o nível mais baixo da nobreza. 
Rótulo turístico, para colar nas malas de viagem,
oferecido pelo Hotel Aliança, de Faro, aos seus clientes
1653 – A Rainha D.ª Luísa de Gusmão fez mercê da alcaidaria-mor da vila do Alvor (antigo concelho extinto por Pombal e suprimido por Passos Manuel, em 1836), ao Conde de Odemira, D. Francisco de Faro (apelido e não naturalidade). O interesse desta alcaidaria estava nas suas pingues salinas, cuja produção se escoava em grande parte na transformação do pescado das armações do atum e das xávegas da sardinha. Estas salinas foram tão cobiçadas que chegaram às mãos dos Távoras, recaindo depois na posse da coroa, pelas razões sobejamente conhecidas.
1894 – Morre em Faro o Barão das Pontes de Marxil. Já escrevi detalhadamente sobre ele no meu livro sobre a «História do Teatro Lethes». Não obstante, deixo aqui alguns elementos biográficos. 
Frontaria do Café Aliança, de Faro, estilo neo-clássico
Quando o Ministro do Reino (primeiro-ministro nos tempos modernos) Fontes Pereira de Mello, visitou o Algarve em 1874, agraciou como de costume as figuras que mais se distinguiram no desenvolvimento local por acções de benemerência e filantropia. Um deles, Francisco Pedro da Silva Soares, construiu à sua custa uma pequena ponte férrea, na sua propriedade do Marxil, para dar passagem à linha do caminho-de-ferro. O benefício público justificou a outorga do título de Barão da Ponte de Marxil. Este Francisco Soares, nascido em Faro em 1830, dedicou-se ao comércio acumulando avultados meios de fortuna que distribuiu em acções de altruísmo, nomeadamente através da fundação do Asilo da Infância Desvalida de Nossa Senhora do Pé da Cruz, para o sexo feminino, e o já desaparecido Teatro 1º de Dezembro, que ficava ali na esquina da Rua Rebelo da Silva, onde está hoje uma sapataria, e esteve até há pouco tempo, no 1º andar, a sede da Companhia de Pescarias do Algarve. Além de comerciante foi também vereador da Câmara de Faro, e procurador à Junta Geral do Distrito. Quando em 1850 o Algarve sofreu uma seca severa, suscitando uma fome generalizada, como todos os flagelos que isso comporta, Francisco Soares instituiu a suas expensas um sopa dos pobres, que durou mais de um ano. Politicamente seguiu o Partido Regenerador, promovendo e patrocinando várias festas locais, nomeadamente a visita do grande Fontes Pereira de Mello ao Algarve. 
Decoração interior do Café Aliança, com fotos e caricaturas
de grandes vultos da cultura algarvia frequentadores do Café
Teve distintos e notáveis descendentes, nomeadamente José Pedro da Silva, um dos impulsionadores do turismo na cidade de Faro, proprietário dos estabelecimentos «Aliança», café, mercearia e hotel (que depois tomos o nome de Hotel Faro). A sua neta, Maria Isabel Pacheco Soares, foi uma notável pianista e senhora de grande cultura, que muito enobreceu o Algarve. Para terminar, acrescento que os Barões da Ponte de Marxil estão sepultados, em túmulo perpétuo, no cemitério privado da Ordem do Carmo, em Faro. Também ali se encontra sepultada sua mãe, Clara Maria dos Anjos Soares, nascida a 10-1-1793, e falecida a 9-8-1877, e seu irmão, António Francisco da Silva Soares, falecido em 17-9-1889.

terça-feira, 25 de abril de 2017

Efemérides algarvias de 20 de Abril


Desenho de Luís Santos, com base em gravura antiga de Faro
1749 - Ocorreram em Faro violentos distúrbios da ordem pública que culminaram com o apedrejamento e quebra das vidraças do edifício do Paço Episcopal, pronunciando-se insultos e abjectas ofensas contra o Bispo da diocese farense, Frei Ignacio de Sancta Thereza (1741-1751). A razão dos tumultos prende-se com a vida privada do antístite, cujo escândalo suscitaria o seu afastamento da diocese. No seguimento dessa polémica, e com o advento do consulado pombalino, a diocese algarvia ficaria repartida em duas (Faro e Portimão), cujos prelados, recrutados ao corpo docente da universidade de Coimbra, nunca chegariam a tomar assento episcopal. Acresce dizer que o Frei Inácio, bispo do Algarve, faleceu em Faro a 15-04-1751, encontrando-se sepultado na cripta da Sé.
Jaime Pádua Franco

Caricatura de Júlio Dantas

1938 - Morre na Praia da Rocha um dos vultos fundacionais do turismo em Portugal, Jaime de Pádua Franco (1868-1938), a quem a propaganda de Portugal no estrangeiro ficaria devendo os mais assinalados serviços. Como algarvio e grande amigo de Tomás Cabreira, deve-se-lhe o financiamento e organização do I Congresso Regional Algarvio, realizado na Praia da Rocha, em Portimão, sua terra-natal, nos primeiros dias de Setembro de 1915.

1946 – Estreia-se em Lisboa, no Teatro Nacional, a célebre peça «Antígona», da autoria o escritor algarvio Júlio Dantas, baseada na homónima de Sófocles, referência incontornável da dramaturgia clássica grega.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Elegia ao amor platónico, por uma ignorada poetisa de Tavira

Por esse Algarve em fora despertam agora do sono letárgico - quais mouras encantadas - as nossas amendoeiras em irradiantes floreiras de níveas cores. Olhando-as na berma das estradas ou nas férteis várzeas desta terra generosa, sentimos quão verdadeira é a lenda da nórdica princesa, cujo amor conjugal definhava de saudades pelos nevados campos da sua pátria.
Lembrei-me então de um poema, escrito à mais de setenta anos por uma poetisa tavirense, de enorme talento e polida ilustração, que em vida foi humildemente ignorada, e hoje permanece esquecida. 
Chamava-se Maria Amália Padinha. Certamente o meu amigo Ofir Renato Chagas saberá melhor do que eu de quem se trata, e até já lhe terá tecido os maiores elogios num dos seus livros sobre a ilustre cidade de Tavira.
Em homenagem ao seu enorme talento não resisto à tentação de aqui transcrever um dos seus poemas, uma elegia ao amor platónico - muito peculiar ao tempo em que viveu - que é também um hino à beleza naturalista e simbólica da flor da amendoeira.
Este poema, simplesmente assim titulado, foi publicado no jornal «A Ilha», nº 711, de 17-11-1945, que em S. Miguel, nos Açores, dava guarida aos jovens talentos que despontavam nos mais diversos recantos geográficos pátria de Camões.
Ouçamos então o seu belo poema, com a reverência que nos merecem os sentimentos que nele resplandecem:


Poema

Passaste junto à minha porta
e eu sorvi
o ar que respiraste...

Perto, muito perto
eu bem te vi...
Mas tão longe
- longe de mim -
quando passaste...

Olhaste indiferente
para a rua
sem reparares que ela
era diferente.
Sem notares que se abria
uma janela
e que alguém
espiava os teus passos...

O sol vinha beijar-me
à janela onde ficara
a meditar.
E deu-me aquele beijo
que em pensamento
um dia te pedira...

Foi então que me voltei
arrancada ao meu cismar...
.............
- Já te foste!...
e na escuridão amarga
tento ainda destronar
o ilusório sonho
que sonhei.

E é tão grande a minha dor,
tão grande o meu quebranto!...
E só
sem amparo,
choro...

Mas não sou eu só
que choro assim.

A minha amendoeira
num quadro todo branco
também chora comigo
odoroso pranto
em pétalas caído
sobre mim...

E essas pétalas que me cobrem
como nevado manto,
nem sei se são pétalas
se lágrimas do meu pranto!...

Tavira, 7 de Março de 1945.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

A anedota dos "cangrejos" de Olhão

Não sou a pessoa certa para contar anedotas, mas não resisto à tentação de revelar esta, que ouvi em Olhão há alguns anos, porque funciona como uma anti-anedota, ou seja, não nos faz rir, mas antes reflectir sobre o carácter dos portugueses. Então aqui vai, tão fiel quanto possível ao linguajar dos "filhos d'Olhão":
Certo dia no cais de Olhão cruzaram-se dois pescadores locais, o mane Carocho e o mane Luice ("mane" é o mesmo que mano, forma carinhosa como se tratam os marítimos olhanenses).
O mane Luice (Lúcio) ia carregado com dois baldes, um em cada mão.
O mane Carocho, após lhe dar de vaia, reparou nos baldes, mas achou estranho que um deles estivesse tampado, enquanto o outro estava destapado, vendo-se claramente que trazia caranguejos.
Perante tão inusitada diferença, perguntou-lhe:
Ó mane Luice o que leva aí nos baldes?
Cangrejos móce...
Mas atão um dos baldes está tampado e o outro não, porquém?
É que no tampado levo cangrejos instrangeros, e no destapado levo cangrejos portugueses...
Mau, nã percebo... atão não tens medo que os cangrejos portugueses fujam do balde?
Eles bem tentam e até querem fugir... mas quando algum começa a subir os outros puxam-no para baixo !!! 
A moral desta anedota, é simples: os portugueses não se solidarizam uns com os outros, e, pior ainda, têm inveja daqueles que pretendendo sair da vulgaridade procuram subir na vida. Acontece que este comportamento de inveja contra aqueles que se distinguem pelos seus méritos e talentos, tem causado graves prejuízos no desenvolvimento do nosso povo, a todos os níveis e em todos os sectores da vida pública.
Acresce dizer, em remate desta anedota, que não foi por acaso que Camões terminou os Lusíadas com a palavra inveja. E, na verdade, a inveja tem sido ao longo de séculos o pecado mortal da nossa cultura, o fel em que se destila o carácter mesquinho dos portugueses. A anedota de Olhão é um retrato bem elucidativo do espírito lusíada. E por isso os olhanenses costumam dizer: a enveja mata móce...