terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Canellas, Ignez Carolina

Natural de Faro, que em idade avançada foi viver para Lisboa, onde viria a falecer a 28 de Dezembro de 1903, com provecta idade. Foi uma mulher bonita das mais admiradas da cidade, frequentadora dos palcos sociais mais selectos e requintados, mas também dos palcos da arte de Thalma, como o Lethes e o 1º de Dezembro, neles conhecendo António Vicente Canellas, um notável artista de comédia, que nunca se deixou seduzir pelo profissionalismo, para não deixar o lar materno. Apaixonaram-se, casaram por amor, e tiveram dois filhos, um casal. Criaram-se aqui, mas a vida e os negócios levaram a família para fora do Algarve, sem nunca deixarem de ser cidadãos de conceituada honradez moral e social.
Panorâmica do interior do Teatro Lethes
Para quem não sabe, o actor Canellas, como era conhecido, teve noites de retumbante sucesso nos teatros do Algarve e Alentejo, representando papéis cómicos de grande exigência artística. Nos anos sessenta do século dezanove, o teatro Lethes de Faro gozava de fama nacional. Dizia-se que a família Cúmano, proprietária do imóvel e da companhia teatral, gastara centenas de contos para manter um “foyer” de grande nível e um guarda-roupa muito superior, dizia-se, ao do teatro D.Maria. Muitos dos seus actores, músicos e cantores de ópera, seguiram as suas carreiras nos teatros da capital, alguns deles com estrondoso êxito, como a Dores Aço (natural de Silves, casada com o actor José Ricardo), a sua irmã Teresa Aço (que foi casada com o actor-empresário Afonso Taveira), e tantos outros. Quando a companhia do Lethes ostentava nos seus programas o nome do actor Canellas, era garantia de casa cheia. Vinha gente de todo o lado para vê-lo representar papéis jocosos que só ele sabia fazer. Ouvir os seus hilariantes monólogos de um acto era lavar a alma de riso e boa disposição.
Alegoria à musica, 
pintura no tecto do teatro
Era mãe do conceituado Alfredo Canellas, farense de coração que se apaixonara pela África, onde chegou aos corpos gerentes da Companhia do Nyassa, uma das mais ricas e poderosas do nosso império colonial. Teve também uma filha, entretanto falecida, que foi casada com o Dr. Vianna de Lemos, outra grande figura do seu tempo, director da famosa Companhia de Papel do Prado.
O féretro de Ignez Carolina Canellas ficou no cemitério dos Prazeres, depositado no jazigo de Augusto César Fernandes, amigo íntimo do filho, não mais regressando ao seu Algarve natal. Os seus descendentes são hoje pessoas de bem, com vida feita na capital, que talvez não saibam quão notável foi a vida dos seus ascendentes.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

«A Ministrada» Lacobrigense

Encontrei há anos na Biblioteca Nacional de Lisboa um interessante códice manuscrito sobre um episódio político ocorrido na cidade de Lagos em 1784. A época em que decorre a trama narrativa prendeu-me imediatamente a atenção, pois decorre no período historicamente designado por «Viradeira», isto é, nos anos subsequentes ao consulado pombalino. Está escrito em verso, repartido em cantos, como se tratasse de Os Lusíadas, em versão reduzida, num estilo crítico-jocoso. Ignoro o seu autor, porque nada consta que o identifique, o que me faz pressupor tratar-se de uma obra clandestina que nunca deve ter visto a luz do prelo.
Desse raro e valioso códice extratei um breve apontamento, no qual anotei os dizeres do rosto:
Brasão antigo de Lagos atribuído por D. Manuel em 1504
A
 MINISTRADA 
Poêma
 critico
dado á luz
Por hum amador da tranquilidade Lacobri- 
gence. Anno
MDCCLXXXIV. (1)

Trata-se de um longo poema épico repartido por seis cantos e dividido em estrofes, narrando certos acontecimentos populares, marcados por gestos de rebeldia e atitudes de amotinação colectiva, que aglutinaram a maioria dos habitantes de Lagos. A contestação popular dirigia-se principalmente contra um vereador e o Juiz de Fóra da cidade, que desempenhavam os seus cargos de forma despótica com violência e arbitrariedade. Todos os factos e personagens nele descritos são identificados e classificados em dezenas de notas que figuram no término de cada Canto. Em boa verdade, não é apenas uma obra poética que ficou inédita por razões políticas, mas antes um verdadeiro documento histórico, embora de cariz literário, urdido no género mais caro à tradição nacional e ao gosto popular. Sendo as estrofes escritas com objectivos políticos, ainda que em tom crítico-jocoso, este códice torna-se numa fonte de informação notável para a história regional, particularmente para a história da cidade de Lagos, acrescendo com isso a necessidade de o publicar.
Este códice manuscrito abre com a seguinte "Introdução", uma espécie de nota explicativa, que passo a transcrever: 
«Os tumultos de Lagos originados das paixões de alguns Ministros, como pela ellevação da Caza do Vereador Bento de Azevedo, tem sido objecto de rizo para huns, e de trabalho para outros; mas de lastima para todos aquelles bons, e sinceros animos que se interessão no publico socego. A ultima dezordem que occazionou, e deu logar a este pequeno Poêma, em que mais se observão as leis da Verdade do que as Regras da Arte, se lhe fez de alguma utilidade, dando a conhecer os males e dezordens, a que nos conduz a discordia, e a ambição, e preencherá o fim do seu Author, unico e singular, que se propoz em ordenálo; e se alguém duvidar da variedade dos factos que nelle se apontão, o Author não tem duvida em apprezentar provas autenticas de todos elles, em qualquer Archivo, ou livraria publica da Corte.»
Confesso que não consegui identificar o autor deste poema crítico-jocoso, muito embora presuma que se trate de um adversário político, talvez um antigo membro das anteriores vereações, cujo espírito progressista e burguês, certamente favorável ao reformismo pombalino, se opunha à mentalidade do monarquismo absolutista que com D. Maria I retornara ao poder, abjurando e derruindo a maioria das conquistas sociais alcançadas durante a administração josefina. 
Não obstante o manuscrito se apresentar anónimo - como aliás convinha ao seu carácter clandestino e aos seus objectivos subversivos - encontrei no final da "Introdução" que acima se transcreve uma assinatura de um único nome: Valle. Fiquei, porém, na dúvida se seria a identificação do autor ou do copista, já que desta «Ministrada» circularam vários exemplares manuscritos.
Seja como for, uma coisa é certa, este códice necessita de ser estudado e analisado por um historiador especializado no conhecimento da época, que prepare a sua publicação numa edição que elucide os leitores de todas as dúvidas que a sua leitura possa suscitar. As notas aduzidas no fim de cada Canto, são muito úteis e importantes para a identificação dos intervenientes na acção política, e sobretudo na contestação social descritas no poema, mas pareceram-me por vezes dúbias, algo veladas e pouco esclarecedoras para a compreensão da diegética histórico-literária. Só um especialista na matéria é que poderá dissipar todas as dúvidas, e até talvez identificar o seu autor.
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(1) Biblioteca Nacional de Lisboa, reservados, códice nº 6058.