sábado, 15 de dezembro de 2012

Um pomar de versos, em frutos de palavras


No mundo actual e no sentido materialista em que vivemos, a poesia parece ser algo que sobrevive ainda, mas de forma ilusória, desgarrada e sem futuro. Esta é a mais confrangedora das minhas constatações quando discorro com os meus alunos sobre a importância da poesia na aplicação a novas estratégias comerciais, ou sobre a inserção do metaforismo e da metonímia na linguagem mercantil e nas relações empresariais. É certo e sabido que me pedem de imediato uma definição de poesia, como se tudo na vida tivesse que ser concreto, objectivo e rigoroso. Como as definições são enunciações indiscutíveis, costumo dizer que a poesia é tudo aquilo que ficou para trás na tradução, servindo-me à letra da afirmação "The road not taken", do poeta americano Robert Frost (1874-1963), que considerava assim a poesia como tudo aquilo que não se consegue traduzir, isto é, que não se consegue definir por palavras simples, claras e intuitivas. O que Frost queria dizer é que tudo aquilo que escrevemos, isto é, que traduzimos da realidade, é prosa; mas o que não conseguimos dizer ou escrever com a clareza do real, é poesia.
Dito de outra forma, poesia é sentir sem racionalizar, isto é, não precisamos da erudição nem da ciência para compreender as coisas, basta senti-las para nos deixarmos emocionar por elas, experimentando-lhes as sensações e o impressionismo judicioso. Camões, quando quis revelar o que é o amor, fê-lo de forma a traduzir em si a própria poesia, afirmando que «é ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente». Significa isto que sentimento e razão constituem as duas faces da mesma moeda, porque ao fim e ao cabo a bipolarização entre o positivo e o negativo – entre o Yang e o Ying da filosofia Zen, entre o bem e o mal, o sagrado e o profano que fraterniza as religiões – são formas seculares de conhecimento que enraizaram a humanidade ao longo de milénios.
Por conseguinte, a poesia é intimista e sublime, demasiado pessoal para ser transmissível, e cuja expressividade necessita de uma imaginação fértil e fecunda para fazer-se sentir, tanto na pele como na alma. Poesia, poema e verso são como o tríptico Saussureano do signo, significado e significante. Estão interligados, fazem parte do mesmo corpo linguístico, ou, neste caso, do mesmo género literário. É assim mesmo que acontece neste livro, nesta tríade ou simbiose em que se traduz a poesia de Santos Serra.

Pomar de Pedras, assim se titula o poema que encerra, e ao mesmo tempo denomina este livro. Pela leitura deste poema, mas também pela maioria os versos que dão corpo e alma a este livro, sente-se uma mensagem de esperança, um alento de fé num sopro de vida: “as pedras perfilam-se no sonho da metamorfose / de cada pedra brotar uma flor” É a mesma mensagem, de esperança e de regeneração, que abre este livro, num belo poema sobre o verde, como signo imperecível da natureza e da vida. “Verde era o vento das liberdades de atingir… Verde era o oceano da viagem para as Índias dos sonhos… Verde era o agora e o porvir no cadinho viril de uma vontade”. Das reminiscências da feliz infância até ao laborioso sucesso de uma vida, juramentada a Hipócrates e à supressão do sofrimento, de tudo isso se faz velado eco e sublimação nos versos que compõem os poemas deste livro, que não fala de pedras, mas antes dos frutos que eternizam a existência humana: o amor e a lealdade, a verdade e a justiça, a solidariedade e o afecto, a honra e a dignidade, o respeito e a fidelidade.
O decantado poeta Eugénio de Castro dizia que o poema em si mesmo «embala a angústia nos braços decepados». É uma brilhante metáfora, que traduz toda a magia espiritual da concepção poética. E neste Pomar de Pedras é a metáfora, usada com incisiva regra e oportuno instante, sem excessos nem exageros, com a justa parcimónia do equilíbrio a que se submete o poeta do verso curto, sóbrio e enérgico. A brevidade do verso – composto por duas a cinco palavras, numa média de seis a doze sílabas – é a principal característica da poética de Santos Serra. A moderação exige a modelação da palavra, trabalho árduo e difícil, que aproxima o poeta do escultor, pois ambos sabem que o olhar de quem os observa não se pode dispersar pelo acessório, devendo concentrar-se no que é verdadeiramente essencial.
Ibne Ammar, grande poeta árabe, nascido em Estombar, usava também a palavra com parcimónia, recorrendo à simbologia das cores, como no signo Saussureano, para construir belas metáforas, de que esta sobre a impressão da leitura é verdadeiramente modelar: «Minha pupila liberta / Quem da página é cativo: / O branco, da margem certa / E da palavra, o negro vivo».
Também neste livro, de versos curtos, incisivos e inteligíveis, onde as metáforas e as imagens poéticas sobressaem vivas de cor e cintilância, se notam por vezes os subterfúgios do artista, que se revela na simbologia da luz e nos matizes pictóricos, ou na energia dos elementos naturais, para impressionar, não a pupila mas o espírito do leitor. São disso exemplo as frequentes invocações das árvores, da terra e da erva, das flores e dos frutos, dos rios e das fontes, do sol e da chuva, dos pássaros e do vento, do raio e do trovão. É por esses recursos poéticos que constatamos, nos interstícios do poema, a existência de um velado misticismo, a presença indefinida duma força criadora, a existência de um indistinto ente supremo, a vigilância dum espírito criador, e muitas vezes a omnipresença de um regulador dos sentidos, que inversamente funciona como catalisador dum impressionismo contemplativo.
Nota-se, nesta sequência, um incontido impressionismo saudosista quando recorda a Coimbra da sua juventude, presença omnisciente nos seus livros, aqui revisitada do Mondego e do Choupal ao Templo de Minerva, numa peregrinação de saudade dos “Que te veneram enquanto vivos / E te levam com eles para a eternidade». Alegram-se os sentidos e rejubilam as memórias quando no poema «Diferenças» relembra a sua chegada à Lusa Atenas: «Era ser livre sem peias de tirano / Era sentir o mar dentro de nós / Era encher de estrelas as noites cor de breu / Era ser rei de um reino de Utopia… / Hoje, mais de meio século / Do meu desembarque neste cais, / A eterna turbulência juvenil / Sobe à Acrópole a cantar».
A marca da tradição, da rebeldia juvenil e a nostalgia do tempo que passa, são punções indeléveis na poética de Santos Serra. Coimbra é a cidade do eterno retorno, o berço onde se fez homem, a radícula das paixões perpétuas e o núcleo das insanáveis saudades do vento que afaga e passa, mas não apaga.
João Pires declamando os poemas do livro do Dr. Manuel
dos Santos Serra na sessão de apresentação da obra, na
Biblioteca Municipal de Albufeira, 5-11-2011.
Outras terras e outras gentes são também aqui evocadas em formosos versos. Tem um destaque muito especial a cidade de Albufeira, louvada e enobrecida em refulgentes poemas de vida, cor e luminescência. O poema «História da Toponímia» descreve a antiguidade de Albufeira de uma forma lapidar, a merecer talvez outros rumos e liberdades, que uma simples página de livro não lhe pode oferecer. Os poemas sobre a «Praia do Peneco» e o «Passeio da Marginal» são igualmente refulgentes medalhas poéticas que os serviços oficiais poderiam avocar nos seus desdobráveis de divulgação turística. Mas outros poemas abundam neste livro que merecem igual destaque. Não querendo ser exaustivo nem maçador, destaco apenas alguns que me impressionaram pela qualidade das suas imagens e pelo brilho da sua inspiração: «Espelho», «O êxito…», «Narciso», «Último olhar», «2010», «Sol e lágrimas», «Ideal», «Cometa», «História breve», «No fim» (sobre Sagres), «O drama», e, por fim, o «Pomar de pedras», que dá o nome ao próprio livro.
Acresce dizer que a poesia de Santos Serra não obedece a modelos, e muito menos aos ortodoxos esquemas que enformaram durante séculos a estruturação lírica das palavras. A ordenação versífera escorre pelo papel à cadência repentina dos sentimentos, livre e solta, sem peias, nem falsos pudores, numa toada de absoluta liberdade criativa. O poeta quando atinge este nível, de elevação fecunda, de autonomia inventiva e de liberdade imaginativa, aproxima-se muito do artista plástico, que concebe na tela a imagem sem visionar o modelo. Quando assim acontece, estamos perante a Arte, na forma e na palavra.
Dizia Baudelaire, o eterno criador das Flores do Mal, que «os poetas são uma raça irritável». Referia-se logicamente ao efeito que a sua poesia causava na sociedade e no espírito político do seu tempo. Mas a noção de exaltação e de exacerbamento do espírito, que só a poesia é capaz de incutir e de produzir na alma do povo, causa de facto grande irritação e incómodo àqueles que pretendem orientar a existência humana para a mediocridade e obscurantismo. A poesia é por natureza revolucionária e não raras vezes foram os poetas, como no tempo de Baudelaire, que conduziram os humilhados e ofendidos, os despojados, os desempregados e toda a casta de desafortunados, para a sublevação nas ruas, nos campos e nas fábricas, em nome da liberdade e da justiça social. Quem não se lembra da importância da poesia de Ary dos Santos, de Natália Correia, de Manuel Alegre e de Zeca Afonso, no eclodir da revolução do «25 de Abril»…
De facto a poesia de Santos Serra, principalmente neste livro Pomar de Pedras, irrita e incomoda aqueles que vêem a existência humana como uma efémera e passageira viagem, desprovida de amarras para atracar no cais da eternidade. E no seguimento dessa asserção pode mesmo afirmar-se que a maioria dos poemas deste livro são verdadeiramente irritáveis, porque conseguem ver, para além do material e do sensível, aquilo que sendo puro contribui para a construção da realidade harmoniosa. Por isso é que Gaston Bachelard disse que «a função principal da poesia é transformar-nos», ou seja, o papel social e a utilidade funcional da poesia consiste, em última instância, no melhoramento da condição humana e no aperfeiçoamento das suas qualidades intrínsecas. Diria, em síntese, que o objectivo final da poesia é fazer de nós pessoas mais puras, mais sinceras, mais justas, leais e virtuosas, em suma, mais verdadeiras, mais sensíveis e emocionais.
Os poetas são irritáveis, sim, porque só eles sabem esgrimir as palavras em acutilantes golpes contra a iniquidade social, a perversão política e a corrupção moral. Não admira, por isso, que os poetas sejam geralmente incompatíveis com a política e o exercício do poder. É que ser poeta, como disse Florbela Espanca «é ser mais alto, é ser maior do que os homens… É ter fome, e ter sede de Infinito! É condensar o mundo num só grito!».
Mas na triste realidade em que vivemos, neste mundo de materialismos egoístas e de futilidades mesquinhas, os poetas são pouco valorizados e até desprezados. É confrangedor ouvir de gente bem instalada, e com responsabilidades sociais, palavras de avaliação depreciativa para com os nossos poetas, apelidando-os de quixotescas figuras, inválidos guerreiros na batalha da vida. Para a bestialidade dominante, os poetas são meros sonhadores, sem serventia nem utilidade. Quem manda, decide e ordena, não gosta de sentir, porque teme que o sentimento fragilize o comando. Enganam-se… porque só aqueles que sentem é que são capazes de compreender e de racionalizar a pungente amargura da injustiça, da desigualdade e da vilania. Um homem que ajuíza e decide deve ter sempre à sua cabeceira um livro de poesia, para que possa aprender a lição de que tudo passa e tudo se perdoa, na ligeira brisa da vida e na húmida bruma do tempo.
José Carlos Vilhena Mesquita