domingo, 23 de agosto de 2009

O Deserto Habitado, de Júlio Conrado


O escritor Júlio Conrado, um algarvio que não renega as suas origens olhanenses, é quanto a mim um dos mais talentosos romancistas da actualidade. Ao contrário desta nova vaga de literatos, polidos ou empoleirados nas elites universitárias e quase sempre aurificados pelos favores dos críticos estipendiados pelas editoras, Júlio Conrado tem-se afirmado pela inquestionável qualidade dos seus livros. A sua ascensão, na íngreme e fragosa colina do sucesso, tem-na feito a pulso, de forma progressiva, de livro em livro, numa segura e crescente caminhada para o lugar de relevo a que tem direito na nossa literatura.
Contudo, muito injustamente não tem incidido sobre o seu nome as luzes da ribalta que iluminam e prestigiam os seus comprovincianos Lídia Jorge, Nuno Júdice ou Ramos Rosa. Digo injustamente porque, com o devido respeito pelos autores citados, Júlio Conrado não lhes fica muito distante em talento e criatividade literária. Provam-no os dezoito livros já publicados, de entre os quais selecciono para a galeria do que melhor tenho lido as obras Gente do Metro, De Mãos no Fogo e Desaparecido no Salon du Livre, este último devidamente sancionado pela crítica estrangeira, o qual aliás considero como o seu melhor romance.
Não obstante, surge agora à luz da estampa uma nova versão do seu terceiro livro de ficção, que surgiu a público nas vésperas do «25 de Abril» e que por isso deve ter passado despercebidamente e quase ignorado no calor desses festivos dias de reaprendizagem da liberdade e da democracia.
Foi um pecado a crítica não se ter debruçado mais atentamente sobre este livro, sugestivamente intitulado O Deserto Habitado, que é sem sombra de dúvida um romance de grande qualidade. Lê-se sem despegar a atenção da narrativa que discorre num cadenciado ritmo entre o presente e o passado, um labirinto do tempo ou uma espécie de jogo entre a vida e a memória. O recurso ao flash-back tão comum nos guionistas do cinema moderno, surge neste livro como reflexão intimista do tempo que nostalgicamente se esfumou na dimensão social de outras galáxias, novos mundos prenhes de sonhos e quimeras, de incomensuráveis idealismos que saciaram a nossa juventude e frustraram os trajectos de vida até desembocarmos em desertos habitados. Este livro é um ponto de partida para o cais da alma, erigido nos recônditos duma consciência plasmada na dor, na saudade e na frustração, que o tempo fez aportar à memória de Olegário Crispim, pseudónimo de um crítico de televisão que num vespertino da capital e em plena ditadura teve a ousadia de criticar com acerada violência o canal estatal. As suas ideias revolucionárias vinham na esteira do Maio de 68, que no nosso país se fez sentir durante a chamada “Primavera Marcelista”. É nesse contexto político que emerge a acção deste romance, por cujas páginas desfilam os pungentes rebates de consciência do pobre jornalista, que suspenso das suas funções de crítico inicia uma “via crucis” por caminhos que não deveriam ter sido trilhados.

A poesia no Olhar das Palavras


José Carlos Vilhena Mesquita

O Infante D. Pedro, a quem chamaram o príncipe das sete-partidas, filho de D. João I e membro da “Ínclita Geração”, foi o introdutor na língua portuguesa do vocábulo POESIA, cujo género literário dizia ser “Coisa mais do sabor do que do saber”.
Talvez por isso é que Rodrigues Lobo no seu livro a Corte na Aldeia, dizia que "a língua portuguesa é branda para deleitar, grave para engrandecer e doce para pronunciar" .
Para ilustrar o espiritualismo e o desprezo dos poetas pelo materialismo, dizia Sá de Miranda – o célebre introdutor do soneto em Portugal - que "os poetas tudo punham em flores e dos frutos nada havia que esperar".
Em Camões a poesia traduziu-se no engenho e na arte com que definiu o espírito lusíada. As suas estrofes revelam as grandezas e misérias, as vaidades e orgulhos, de um povo escasso, pobre e desprezado, mas que teve a indómita coragem de desvelar ao mundo novos mundos nunca antes revelados.
Mais tarde, quando o materialismo burguês se apoderou do nosso país – um pouco à semelhança do que estamos a viver agora - Camilo Castelo Branco, que chegou a ter pretensões poéticas, afirmava enfurecido: «Gela-se-me o sangue, quando a ignorância petulante faz um trejeito de menosprezo ao talento e diz: poeta!».
Tanto no mundo da política como no da economia existe aquilo a que se convencionou chamar o "diálogo Norte-Sul", numa espécie de geografia do poder e do desenvolvimento tecnológico. Curiosamente, olhando para a cultura universal, parece que no seio dos povos do Norte a poesia tem vida, mas nos do Sul é a vida que tem poesia.
Ora a Poesia é, em primeiro lugar, um acto de comunicação com o Eu e com o Outro. Mas a Poesia também é um lugar de resistência à globalização, cada vez mais redutora e homogeneizante, fulcralizada num modelo imperialista de cultura inspiradamente anglo-americano, no qual só o mediático é universal.
A Poesia é simplesmente a arte de fazer versos, transmitindo neles o sentimento, a forma e o carácter, numa simbiose da intimidade com a estética, sem nunca perder de vista os excelsos valores da Ética.
A Poesia associou-se à paixão como suprema expressão do amor, num entrelaçar de imagens e de metáforas que transluzem o sofrimento e a dor. Porém, como dizia Fernando Pessoa, "o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente". Por isso é que a poesia obedece a uma formula de composição estética e musical. O seu objecto é a beleza de expressão associada à ideia, usando a palavra com parcimónia, mas procurando elevar os conceitos até ao nível da plurivalência entre o significado e o significante.
A poesia deve expressar uma certa harmonia entre a inspiração lírica e a mensagem literária, dando-lhe um carácter comovente, sem extinguir certezas absolutas.
A Poesia é algo que acontece e nos transcende, é um trabalho sequencial com a palavra e um aprimoramento de ideias e de pensamentos, concebidos nos céus etéreos da lógica, que ultrapassam a materialidade e a impermanência da vida. Mas por outro lado a poesia é a própria Vida, pejada de memórias recorrentes e de magnetismos telúricos, impregnando-se, por vezes, de obscuros e insondáveis mistérios.
A poesia é dialógica. Com a palavra inventamos mundos usando conceitos profundos e belas metáforas, mas é com palavras simples de todos os dias que se faz a melhor poesia. O poeta José Craveirinha concebia a criação lírica como uma "fraternidade das palavras" afirmando que "as palavras só precisam de quem as toque ao mesmo ritmo para serem todas irmãs".
Mas a memória das palavras não depende da memória, mas antes das palavras. Existe um Sul mítico no esplendor do Sol, nas areias movediças da memória e na espuma das palavras, como a presença viva dos nossos ascendentes que pairam sobre a nossa memória. Os lugares de recorrência acontecem frequentemente na poesia, quando lembramos as raízes e o tempo que passa, como memória da água.
Existe um tempo de maturação poética, durante o qual o poema precisa de adormecer na sua forma crisálida até despertar como eflúvio de vida e de beleza. Em jeito de crítica, construtiva, diria que existem dois tipos de poetas: os de inspiração vulcânica (a que chamo repentistas) e os versificadores aplicados, ou seja, aqueles que fazem o poema como quem cultiva um canteiro de flores à espera da primavera. Há certos poetas que por falta de tempo e de paciência dão à estampa os poemas que escrevem de chofre, na primeira penada, sem tão pouco verificarem se neles existe sentido, Beleza ou Graça.
Em suma. O poeta é um mago cinzelador da palavra transformada em verso, um alquimista da Beleza.
Fernando Pessoa definiu a poesia e o poeta nesta simples e genial síntese: «Deve haver no mais pequeno poema de um poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero».
António Gedeão, o poeta/cientista cujo sensacionismo estético se inspirava nos mistérios da física e na revelação laboratorial da química, conseguiu traduzir num só verso, engenhoso e genial como quase todos os outros que compõem a sua obra, a preponderância da palavra e do espiritualismo lírico sobre a incomensurável força da matéria, afirmando:
«Todo o tempo é de Poesia, desde a arrumação do Caos, à confusão da Harmonia»

A Poesia é simplesmente a arte de fazer versos, transmitindo neles o sentimento, a forma e o carácter, numa simbiose da intimidade com a estética, sem nunca perder de vista os excelsos valores da Ética. Mas, por outro lado, a Poesia associou-se à paixão como suprema expressão do amor, num entrelaçar de imagens e de metáforas que transluzem o sofrimento e a dor.
Classicamente a Poesia obedece a uma fórmula de composição estética e musical. O seu objecto é a beleza de expressão associada à ideia, usando a palavra com parcimónia, mas procurando elevar os conceitos até ao nível da plurivalência entre o significado e o significante. A poesia deve, pois, expressar uma certa harmonia entre a inspiração lírica e a mensagem literária, dando-lhe um carácter comovente, sem extinguir certezas absolutas.
A Poesia é algo que acontece e nos transcende, é um trabalho sequencial com a palavra e um aprimoramento de ideias e de pensamentos, concebidos nos céus etéreos da lógica, que ultrapassam a materialidade e a impermanência da vida. Mas, por outro lado, a Poesia é a própria Vida, pejada de memórias recorrentes e de magnetismos telúricos, impregnando-se, por vezes, de obscuros e insondáveis mistérios. A memória das palavras não depende da memória, mas tão somente das palavras.
Existe um tempo de maturação poética, durante o qual o poema precisa de adormecer na sua forma crisálida até despertar como eflúvio de vida e de beleza. Em jeito de crítica, construtiva, diria que existem dois tipos de poetas: os de inspiração vulcânica, a que chamo repentistas, e os versificadores aplicados, a que chamo poetas da inteligência. Os primeiros são os apóstolos do povo, cantam aquilo que vêem com a simplicidade do seu limitado horizonte intelectual. Os segundos versejam com eloquência, constroem imagens e metáforas de fino recorte estilístico, evidenciando uma forte presença intelectual, entretecida na sensibilidade estética e na elevação do pensamento filosófico. Há certos poetas que escrevem de chofre, na primeira penada, sem tão pouco verificarem se nos seus poemas existe sentido, Beleza ou Graça.
O poeta é, em suma, um mago cinzelador da palavra transformada em verso, um alquimista da Beleza. Por isso, António Gedeão, o poeta/cientista cujo sensacionismo estético se inspirava nos mistérios da física e na revelação laboratorial da química, conseguiu traduzir num só verso, engenhoso e genial, a preponderância da palavra e do espiritualismo lírico sobre a incomensurável força da matéria, afirmando:
«Todo o tempo é de Poesia, desde a arrumação do Caos, à confusão da Harmonia»

Ora é precisamente essa arrumação, essa harmonia, esse profundo sentido estético do verbo lírico, que predomina neste Olhar das Palavras, cuja estrutura sequencial obedece a um raciocínio lógico, a uma frenética evolução de sentimentos e de sensações que progressivamente emocionam o leitor até ao arrebatante epílogo do último poema, sugestivamente intitulado «A Ira».
As palavras, dizia o Padre António Vieira, são como as estrelas, a uns parecem muito distintas e a outros muito claras. É por isso que antes de escrever é preciso saber pensar, razão pela qual este Olhar das Palavras constitui um claro exemplo das tais estrelas distintas, de que falava Vieira, ou daquilo que costumo designar como a intelectualização da poesia. Significa isto que a poesia de Santos Serra não está ao alcance todos, porque exige uma leitura pausada, ponderada, reflectida e inteligente. Nos seus poemas as palavras não são claras nem evidentes, não são translúcidas nem cristalinas, porque de outro modo perderiam todo o brilho das estrelas que se elevam acima da pequenez e da vulgaridade. Os seus poemas ultrapassam as barreiras físicas do visível, erguendo-se nos etéreos céus da sensibilidade estética. O poema intitulado «Temporalidade» demonstra claramente como nos impressionam as coisas visíveis e nos escapam por detrás dos sentidos as coisas belas que verdadeiramente compõem a vida: “ O horizonte é o biombo dos sentidos... / O verdadeiro mistério / É não termos tempo / De ver o que ocultam / As coisas que se vêem...”
Nesta obra sente-se uma certa similitude, na construção e na diegese poemática, com o evolucionismo modernista, inspirando-se nos supremos valores da ética filosófica e no intervencionismo sociopolítico, visionando por isso horizontes mais largos e distantes, que superam as trivialidades da vida. Não se vislumbra, na poesia de Santos Serra, uma colagem aos movimentos ou escolas poéticas mais recentes, nem tão pouco uma identificação estética com as precedentes correntes artísticas, embora se perceba que deles não se abstrai, nem deles se afasta com total isenção. Sentem-se naturais influências de Herberto Hélder, de Egipto Gonçalves ou de Mário Cesariny, situando-se, porém, muito distante do surrealismo a que Cesariny vinculou grande parte da sua obra.
Num estilo muito peculiar, os poemas de Santos Serra são vigorosos, incisivos e pujantes no sentido estético do significante, deixando para trás do biombo dos sentidos a musicalidade rimática, esse subterfúgio em que se escudam muitos poetas para camuflarem as suas inaptidões estético-filosóficas. Por isso a sua poesia é um enigma insuflado nos sentidos, iluminado pela razão estética, matizado nas sombras invisíveis do silêncio em que se enraíza a memória e se desenrola o tempo: “Gosto de poemas, / Insaciáveis mendigos de enigmas / Do mundo antes do mundo / Incisões de vento em almas invisíveis, / Sombras agitadas / Sonoras e perfeitas / De silêncios coloridos de corações do tempo”.
Sem nunca desprezar o amor, as paixões da vida e os mistérios da morte, temáticas intrinsecamente poéticas, esta obra avança sobre os candentes problemas do mundo actual, operando uma reflexão profunda sobre a conservação do ambiente, o respeito pela natureza e pela herança cultural que os nosso antepassados nos legaram. Sem cair num ecologismo romântico, estafado e desacreditado, Santos Serra enaltece as origens da vida na força hercúlea do mar e na incandescente luz solar, que são ao fim e ao cabo as características mais vivificantes deste Algarve “ardente, impressionista e mole, deste lindo preguiçoso adormecido ao sol” – como dizia João Lúcio.
Este livro é uma ode à vida, plasmada e contextualizada no espírito do sonho e na materialização da memória. Toda a obra está perpassada de sentimentos, de sensações e de apaixonadas emoções, como um testamento reflectido nos 81 poemas em que se revêem os 81 anos de vida do autor. A suprema felicidade do poeta será certamente a de comungar com o leitor das mesmas esperanças e ilusões, dos mesmos ideais e quimeras, que evoluindo no tempo se refugiaram depois na memória, sulcando a traço profundo o carácter em que se esculpiu a sensível personalidade do Poeta. O tempo, no seu decurso bio-cronológico e na construção psico-ideológica da mente, encarregou-se de moldar os versos e de os transmutar neste esfíngico Olhar das Palavras.
A obra aí está, falará por si a quem a ler. Na minha modesta opinião é a melhor que o autor já escreveu. Sinto nela um apuramento de qualidade na sofisticação lírica da sua temática. Mas também nela sinto um testemunho sincero e um legado altruísta, de que todos seremos fiéis depositários, se assim merecer a honra e a coragem com que todos devemos defender o Algarve.
Este livro é acima de tudo um juramento de amor e de fidelidade para com uma terra que, por não ser a da sua origem, lhe deve expressar a gratidão de preservar o seu nome, a sua memória e sobretudo a sua obra literária, enaltecendo-a entre as mais ilustres e distinguindo-o entre os mais talentosos poetas do Algarve do século XX.

ALBUFEIRA em 1950

José Carlos Vilhena Mesquita

No passado dia 27 de Abril de 2008 tive a honra e o privilégio de apresentar ao público a mais recente obra do Dr. Manuel dos Santos Serra, intitulada Albufeira 1950. Perante a ilustre e muito numerosa assistência, que encheu por completo o auditório da moderna Biblioteca Municipal de Albufeira, enobrecida pela presença do presidente da autarquia, pronunciei algumas palavras de apreço pelo autor, médico e ilustre homem de letras, cuja prestigiada obra clínica e intelectual é por demais conhecida, dispensando por isso os nossos encómios. Porém, gostaria de deixar aqui exarados alguns dos considerandos, tecidos durante a apresentação dessa obra. No início da década cinquenta o, então jovem médico, Dr. Manuel dos Santos Serra, frequentou no Instituto Ricardo Jorge, em Lisboa, um curso de Medicina Sanitária ministrado pelos mais conceituados especialistas na matéria, de entre os quais se destacavam os Drs. Cabournac, Gonçalves Ferreira, Arnaldo Sampaio e, muito particularmente, o Dr. Fernando Correia, director daquele Instituto, reputado sanitarista de prestígio internacional. Para a conclusão desse curso os alunos teriam que escrever uma monografia sobre um concelho da sua preferência, acerca do qual teriam que investigar não só as potencialidades socioeconómicas da região como muito especialmente as condições sanitárias e as práticas de higiene dos seus habitantes, procurando inventariar a existência de doenças do foro infecto-contagioso e degenerativo, para cuja erradicação médica deveriam mencionar e alvejar as causas mais evidentes. A todos foi distribuído idêntico modelo de trabalho acrescido de um inquérito sanitário, o qual, depois de preenchido, constituiria o móbil primacial do curso e, ao fim e ao cabo, de todo o projecto que lhe estava adjacente, ou seja, a identificação, prevenção e combate das doenças endémicas e dos surtos epidémicos que daí pudessem resultar. Como o Dr. Santos Serra vivia desde os sete anos de idade em Albufeira, não admira que tivesse escolhido aquela paradisíaca vila, da então quase ignorada orla costeira algarvia, para enfoque da sua investigação sanitária. O trabalho conclui-o no ano seguinte, em 1953, enviando-o depois para o Dr. Fernando Correia, director do Instituto, que orientava as monografias com pulso de autoridade e conselhos de mestre. De tal forma assim era que não permitia aos jovens médicos que dissertassem sobre questões de saúde pública, alegando que desse modo correriam o risco de confundir a ciência com a especulação, de baralhar o saber com a imaginação, ou, pior ainda, de misturar o conhecimento com o ideal. A metodologia era compreensível: na ciência não existe o cientista, mas apenas o conhecimento. Por isso, o discurso científico deve ser frio, árido e impessoal. Esta concepção está hoje um pouco aligeirada, ainda que, na sua essência, continue a ser paradigmática. Todavia, neste caso, foi contraproducente, pois que um dos principais objectivos desta monografia consistia no preenchimento de um inquérito de Higiene Rural, repartido por mais de 120 questões relativas à sanidade pública, ao asseio doméstico, à limpeza das ruas, aos equipamentos sanitários, ao abastecimento de águas e ao escoamento de esgotos; questões essas a que o Dr. Santos Serra teve que responder de forma peremptória (sim ou não) e demasiado sintética. Para os promotores do curso e para o Instituto Ricardo Jorge o que interessava era a informação amorfa e insensível, para ser depois tratada numa espécie de diagnóstico global da saúde pública, tendente à formulação de medidas apropriadas ao estabelecimento de um plano nacional de higiene sanitária. Tentando fugir à frieza do inquérito, o Dr. Santos Serra contornou de forma inteligente os objectivos propostos, escrevendo uma monografia no sentido mais lato do termo, analisando, discernindo e criticando diversos aspectos da vida económica, social e cultural daquela vila. Para isso deu-se ao trabalho de esquadrinhar-lhe as origens históricas, de esboçar o seu enquadramento geográfico, orográfico e hidrográfico; de analisar a flora e a fauna, sobretudo marítima, cujo aproveitamento industrial constituía a base económica de toda a região algarvia. Curiosa e muito importante é também a descrição da arquitectura rural e urbana, dos hábitos de higiene e das diferenças de habitabilidade entre o campo e a cidade; a insuficiência das vias de comunicação, a falta de iluminação pública, a estrutura demográfica e sua distribuição concelhia; a alimentação, vestuário, usos e costumes, etnografia e religiosidade, carácter e índole do albufeirense, lugares de reunião social, indústrias locais e, por fim, patologia e higiene municipal. Extravasando os propósitos primordiais desta monografia, merecem uma particular referência as cheias de 1949, de que resultaram graves prejuízos materiais a que o Dr. Santos Serra deu o devido destaque, clamando pelo urgente auxílio do governo. Facto aliás relevantíssimo para os estudos mais recentes da evolução climática, que apontam hoje para visões catastróficas. Alguns pertinentes contrastes com a actualidade A leitura da monografia, Albufeira 1950, permite-nos constatar que são muitas as diferenças com a actualidade, evidenciando-se assim um caminho de progresso suscitado pelo incremento turístico do Algarve. À distância de meio século são gritantes e quase incomparáveis as alterações operadas no casco urbano da actual cidade de Albufeira, e até mesmo no ordenamento das freguesias concelhias. As razões do progresso justificam-se através do investimento no sector terciário, sobretudo no turismo, sendo igualmente de acentuar que após o «25 de Abril» a autonomia do poder local tornar-se-ia no motor do desenvolvimento nacional. Acresce que ao financiamento dos projectos autárquicos se sucedeu a introdução em larga escala de capitais da União Europeia, que suscitaram não só a abertura de novas vias de comunicação como ainda a modernização das estruturas produtivas. As diferenças suscitadas pela leitura desta monografia saltam à vista, desde logo na superfície do concelho, que diminuiu de 209,4 km2 para os actuais 140, 7 km2, mantendo-se porém as mesmas três freguesias, Guia, Paderne e Albufeira. Na fauna, refira-se que ainda haviam raposas nas furnas da Gralheira, e erradamente se pescavam Toninhas para uma fábrica de óleos em Portimão. Os materiais de construção da habitação, sobretudo no meio rural, eram de origem natural, com paredes de taipa, ladrilhos de barro cozido e rebocos de cal, parecendo evidenciar uma ancestral influência árabe. A casa rural algarvia apresentava dependências para animais, palheiros, pocilgas, e terraços para secagem dos frutos, sobretudo do figo nos “almeixares” de cana. Quanto ao abastecimento de água, fazia-se apenas na vila ao domicílio, abastecendo-se a maioria das habitações nas cisternas, poços e fontanários públicos. O saneamento fazia-se directamente para o mar e para as lixeiras, sendo certo que se produzia muito menos lixo poluente do que actualmente. As estradas eram macdamizadas, sendo apenas alcatroada a que ligava às Ferreiras, o resto eram caminhos e veredas. A gare do comboio situava-se a 6 km de distância da vila, cuja ligação se fazia em carros de mula ou na típica “carrinha algarvia”, sendo que apenas existiam 3 táxis em Albufeira e 1 em Paderne. A luz eléctrica, inaugurada em 1926, existia somente na vila, produzida numa central a gasóleo; acendia-se ao anoitecer e apagava-se às 2 horas da madrugada. A população, conforme refere o livro, repartia-se entre agricultores e pescadores, totalizando 14.765 hab.; repare-se que em 2001 ascendeu a 31.543 hab, crescendo à média de 1000 hab/ano; a densidade populacional, em 1950, era de 70,5 hab/km2 e no censo de 2001 era de 224,2 hab/ km2. Note-se que em 2001 o concelho de Albufeira era o segundo mais populoso do Algarve, sendo Loulé o primeiro com 59.158. Preocupante é referir que nos últimos censos (1991 e 2001) decresceu a população em três concelhos: Alcoutim, Monchique e Vila do Bispo. A população total do Algarve é hoje de 395.208. Mas a taxa de crescimento natural no Algarve é de -062% enquanto a taxa nacional é de 1,43%. Significa isto que a população algarvia está em queda acentuada. Como curiosidade, mas sem comentários, refira-se que o índice dos divorciados em 1950 era de 0,05%, hoje é de 2,81% e a nível nacional é 1,87%; em contrapartida os filhos ilegítimos eram 15% da população total e hoje é praticamente 0; o agregado familiar médio era de 4 pessoas, semelhante ao de hoje; a taxa de religiosos não católicos era de 0,3% subindo hoje para mais de 20%. Mas a maior mudança processou-se ao nível dos usos e costumes, da alimentação e do vestuário, alterando-se profundamente com a melhoria do nível de vida das populações e com o cosmopolitismo suscitado pelo turismo. Acerca do carácter e índole do povo não resistimos à tentação de transcrever as palavras do Dr. Santos Serra: «... é de certa maneira religioso e apaixonado pela música, por desportos náuticos e por tudo que se liga com a vida no mar. É uma população pacata, de certo modo respeitadora, sem grande método e iniciativa, mas corajosa como o demonstra a predilecção pelo mar. Como o algarvio em geral, o albufeirense é expansivo, acolhedor e, contrariamente ao que se diz do homem do sul, é humano, caridoso, sossegado e valente». A economia local baseava no comércio, na agricultura e na pesca, resumindo-se a indústria a uma fábrica de xarope de alfarroba e artesanato do figo e da amêndoa, além de pequenas moagens de cereais em Paderne e Guia. Em Paderne existiam progressivas cerâmicas de tijolos e telhas. Os habitantes reuniam-se nos cafés, tabernas, sociedades recreativas (2 na vil e 1 em Paderne), nas farmácias (2 na vila 1 em Paderne) e sobretudo no moderno Cinema Pax, que à época constituía um oásis na cultura local. A Patologia do concelho, aponta como causas de morte as diarreias e enterites nas crianças, com 17,2%; nos idosos as hemorragias cerebrais, embolias, tromboses, 8,7%; senilidade 3,8%; não especificadas 5,5%; os restantes 60% deveriam distribuir-se pelas doenças derivadas da tuberculose, sífilis, ataques cardíacos e tumores malignos, que estavam em crescimento. As doenças sazonais, tifóides e epidémicas eram pouco significativas, o que atesta a salubridade da vila. Inquérito de Higiene Rural Os dados do Inquérito revelam, entre milhentas outras coisas, que apenas existiam 5 médicos para todo o concelho (2 facultativos municipais, 1 da Casa dos Pescadores e 2 de clínica livre). A média era de 1 méd/3000 hab.; hoje é de 2,3 méd/1000 hab. Havia duas Farmácias em Albufeira e uma em Paderne, hoje há 2,7 farmácias por 10.000 hab., estranhando-se que este índice não tenha melhorado, decorridos mais de cinquenta anos. O serviço de Hospital, com 16 camas, dedicava-se a partos, à pequena cirurgia e ao asilo de idosos. Curiosamente ainda havia casos de lepra, e um crescente índice de tuberculosos; não havia prostituição e as doenças venéreas eram muito raras. Para além de muitos outros informes, retemos que o valor da jornal rural nos homens era de 20$00 e 10$00 nas mulheres, isto é, 600$00 e 300$00 mensais, a contrastar com os 440 € auferidos pelos actuais trabalhadores rurais. Curioso é também referir que o Orçamento camarário era de 1.575 contos; cuja receita ordinária era de 700 contos, isto é 40% do total e a extraordinária era de 768 contos, ou seja 60% do total. Lamentavelmente os gastos camarários com a Higiene e Limpeza eram apenas de 2%; cabendo às Águas e Saneamento uns irrisórios 3,75%. Em comparação com os elevados gastos actuais é situação sanitária das populações é bem mais positiva e incomparavelmente mais confortável. Uma das principais utilidades desta monografia está precisamente na comparação dos dados, na avaliação das diferenças entretanto operadas, e, sobretudo, na pesquisa das justificações para todo o processo de evolução e modernização da vida socioeconómica, assistencial, higiénica e sanitária do concelho de Albufeira. É um desafio que deixamos aos mais abalizados

A chegada do Comboio a Faro

Já aqui falamos da inauguração do caminho de ferro em Faro. Mas convém acrescentar que o primeiro comboio que percorreu toda a linha entre Lisboa e Faro, só chegou aqui depois de concluída a ponte metálica dos Moratos. Por conseguinte, foi so no dia 21 de Fevereiro de 1889, às 11 horas da manhã, que chegou finalmente a Faro o “progresso”.

Na ocasião de tão memorável acontecimento histórico, fizeram-se grandes festejos e outras manifestações de júbilo popular, cabendo as honras do grande melhoramento ao ilustre Conselheiro Luiz de Bivar, que muito se empenhou junto do governo para a concretização desse desiderato.
Já agora, acrescente-se que trabalhou afincadamente na Ponte dos Moratos, um engenheiro belga chamado Maurice Saint Palais, que era chefe de serviços na Sociedade Internacional de Braine le Comte, da Bélgica, o qual partiu depois para o norte do país onde construiu mais 18 pontes de notável importância para a implantação do caminho de ferro em Portugal.

sábado, 22 de agosto de 2009

CASTRO MARIM – documentos e curiosidades


A Bula do Papa João XXII, “Ad ea ex quibus cultus angeatur”, instituiu a Ordem de Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, a pedido de El-rei D. Dinis, dando para sua residência a Vila de Castro Marim. Pela dita Bula a Ordem apropriou-se de todos os rendimentos, jurisdições e regalias de que beneficiava a Ordem dos Templários, extinta pelo Papa Clemente V; também nessa Bula nomeava para grão-mestre Egídio Martins, sujeitando-se a Ordem de Cristo à visitação dos abades de Alcobaça. Dada em Avinhão, a 14-3-1319. Escrita em pergaminho, com selo de chumbo pendente.
ANTT, Gaveta VII, Maço 5, doc. 2; acrescente-se ainda outra Bula relativa ao mesmo assunto em ANTT, Gaveta VII, Maço 8, doc. 5 e docs. 6 e 8.

Doação de Impostos à Ordem de Cristo da vintena de todo o pão que passasse pelo rio Guadiana e da terça da barca que passasse de Castro Marim para Aiamonte. Pergaminho em bom estado, assinado por D. Manuel I e datado de Lisboa a 14-5-1504. ANTT, Gaveta VII, Maço 11, doc. 10.
Acordo fronteiriço entre Castro Marim e Aiamonte, pelo qual se ordenava que os barcos e batéis que entrassem pela foz do Guadiana para cada uma das ditas vilas não fossem embargados pelos moradores dos respectivos lugares.
Pergaminho em mau estado, datado de 1288. ANTT, Gaveta XV, Maço 15, doc. 21.
Escambo - Pergaminho em bom estado, com selo pendente de cera, datado de Leiria a 7-11-1372, que trata do escambo feito entre D. Fernando e o mestre da Ordem de Cristo, pelo qual el-rei trocou Castelo de Vide por Castro Marim. ANTT, Gaveta VII, Maço 14, doc. 1
Traslado de uma inquirição que se realizou a respeito dos lugares de Castro Marim e de Aiamonte. Escrito sobre papel, com 12 folhas e em bom estado, datado de 10-11-1537. ANTT, Gaveta XIV, Maço 5, doc. 15.
Anadel-mor - Apontamentos a respeito de Garcia de Melo, anadel-mor de Castro Marim. Escrito em papel, com 2 fls., em bom estado, datado de 1509. ANTT, Gaveta XX, M. 5, d.14.
Foral antigo encontra-se no ANTT, Maço de Autos sobre Direitos Reaes e da Ordem de Cristo, n.º 1, e tb. a fls. 18 e 22, estando datado de 1-5-1282. Veja-se tb. no Livro I do Rei D. Afonso III, fl. 141, e Livro I do Rei D. Dinis, fl. 44vº. Ver tb. os Autos entre as Partes, os moradores da mesma vila e Lopo Mendes seu comendador, nos quais se deu contra este Sentença a 21-3-1504 para que não levasse mais direitos do que aqueles que estipulava o Foral. O foral manuelino, ou Foral Novo, foi dado em Lisboa a 20-8-1504, encontrando-se no Livro de Foraes Novos do Alemtejo, fl. 24, col. I.
Etimologia Tiponímica - O Prof. José Leite de Vasconcelos, na Etnografia Portuguesa, vol. II, p. 622, dá curiosas achegas para a etimologia do topónimo Castro Marim. Diz que é um dos mais estranhos topónimos meridionais em que entra um genitivo; que por vezes se traduz por “Castelo da beira-mar”, face à designação Castrum Marini; que o topónimo Castro é raríssimo no sul e, por isso, não repugna que Castro Marim proviesse da época romana ou visigótica.
Pégo - Designação que o Prof. Leite de Vasconcelos registou como aplicada em Castro Marim ao vento de sudoeste: o tempo está Pégo, era um dito comum naquela vila, como se comprova pelo seguinte ditado: “Quando Dês q’ria / do Pégo aventava /e do Norte chovia”. Segundo o eminente etnólogo “Pégo” provém do mesmo étimo latino, pelagus, que significa mar (cf. Opúsculos, III, p. 477).
Sentença dada pelo infante D. Henrique, duque de Viseu e regedor da Ordem de Cristo, a favor de Diogo Lopes de Freitas, contra Martim Vicente Garrido, pela qual foi condenado a pagar dois barcos bons e aparelhados como o que levara carregado de trigo pela foz do rio de Castro Marim sem pagar o direito de portagem na forma do seu foral. Escrito em papel, bem conservado e com selo de chapa. Dada em Estombar, a 20 de Janeiro de 1447.

ALCOUTIM


A título de curiosidade aqui ficam uns breves e quase irrelevantes informes sobre este concelho da serra algarvia.
Achados arqueológicos - No Montinho das Laranjeiras descobriu-se uma vila romana com belos mosaicos decorados com peixes e figuras geométricas. O espólio levantado foi para o Museu Etnológico de Lisboa.
Boticário - Em 21-5-1819 foi passada Provisão à Câmara de Alcoutim para estabelecer um partido de Boticário com o ordenado anual de 30.000 rs. Isto prova que desde o início do séc. XIX existia assistência médica no concelho (ANTT, Chancelaria de D. João VI, livro 33, fl. 40 v.º).
Foral - O seu foral antigo foi dado em Beja, e teve como modelo o de Évora, a 9-1-1304 (Livro III da Chancelaria de D. Dinis, fl. 29 v.º, col. I, in principio)
O foral manuelino foi dado em Évora a 20-3-1520 e encontra-se no Livro de Foraes Novos do Alemtejo, fl. 115, col. I.
Guerra da Restauração - Foi em Alcoutim que mais se fez sentir, por causa do duelo de artilharia que em 1642 opôs ao forte de S.Lucar do Guadiana. A este combate e ao incêndio ateado à Câmara pelas guerrilhas miguelistas nas Lutas Liberais, se ficou devendo a perda do arquivo que devia ser notável.
Prateleiro - termo usado em Alcoutim, significa uma estante para pratos ou outra loiça de uso doméstico (registo de José Leite de Vasconcelos, Opúsculos, vol. I, p. 221.)
Quadra - Leite de Vasconcelos publicou na Etnografia Portuguesa, vol. II, p.301, esta quadra:
O Alcôitim muralhado!
Que lindas muralhas tem!
Se não fossem as muralhas
Não vivia aqui ninguém!
Ratos - O etnógrafo Leite de Vasconcelos recolheu na freguesia de Vaqueiros em 1896 uma fórmula para “encantar os ratos” (in Opúsculos, vol. V, p. 546).
Rua - Existe em Évora uma rua com o nome de Alcoutim.

Inauguração do Comboio em Faro

Foi a 21 de Fevereiro de 1889 que chegou a Faro o primeiro comboio. Era apenas uma viagem experimental, pelo que se compunha de pesados vagões de mercadorias, para testar a segurança da linha, que se encontrava em obras havia mais de vinte anos. Isso deveu-se ao facto de nesse tempo, e particularmente nessas duas décadas, ocorrerem momentos difíceis e até de algum dramatismo para a sobrevivência económica das regiões do Alentejo e Algarve, assoladas por secas, carestia de vida, desemprego e fome quase generalizada. A construção da linha de caminho de ferro foi uma forma de ocupação de mão-de-obra, mesmo que os carris tivessem de ser de madeira pitada de bronze para simular a linha original, que os ingleses vinham fiscalizar de forma descuidada. A frase “para inglês ver” tem aqui a sua origem.
Como então tudo se fazia de forma muito lenta, agravada pelas várias polémicas sobre o seu traçado (lembre-se o caso de Serpa e de Loulé), só mesmo nos últimos três anos é que a linha foi efectivamente montada desde Lisboa até Faro. Mas isso são contas doutro rosário, que não interessa aqui contar.
Depois daquela viagem experimental, importa frisar que foi a 1-7-1889 que chegou o primeiro comboio de passageiros a Faro. Nessa viagem inaugural chegava a Faro pela primeira vez o Dr. Ludovico de Menezes, conceituado veterinário e notável escritor a quem o Algarve muito deve. Extractamos de uma carta sua uma breve passagem em que descreve essa primeira viagem:
“Confirmo que foi precisamente num primeiro comboio, que eu, em 1 de Julho de 1889, desembarquei em Faro, estando a estação e cercanias repletas de povo que fora assistir ao feliz espectáculo da chegada.
Ao desembarque, um moço que tomou conta da minha mala, levou-me ao Hotel Nicola, através de ruas embandeiradas e janelas floridas de ranchos e damas em “toilettes” alegres e claras, abrigando-se do ardor daquele quente sol de Julho sob o pálio das papoilas floridas das suas umbelas. Ali me destinaram um exíguo quarto de segundo andar, escassamente mobilado e ali adormeci até vir o criado avisar-me que eram horas de jantar.
Nesse dia ao entardecer e depois do jantar, fui tomar lugar entre os cavaqueadores que discutiam alegremente o festivo acontecimento à porta da Havaneza, onde no interior, a dentro do balcão, pontificava António Tavares, seu proprietário, auxiliado por um rapaz de Albufeira, de nome Eduardo, se bem me lembro...”

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Largo da Palmeira, em Faro


Por razões de alargamento da rua que circunda a actual Praça Ferreira de Almeida, em Faro, foi a majestosa palmeira, que lhe dava a designação popular, abatida em finais de Fevereiro de 1950. Resistiu ao tempo e às agressões humanas durante meio século, pois fora mandada plantar em 1900 pelo então presidente da edilidade, Prof. João Rodrigues Aragão, docente no Liceu (cujas instalações ficavam na Rua do Município, onde é hoje a Polícia Judiciária) que foi uma das figuras mais conhecidas do seu tempo, pela sua vaidade e jactância politiqueira. Como era muito enfatuado e até arrogante, o povo chamava-lhe D. Pavão, havendo logo quem o criticasse pela ideia da palmeira com a seguinte quadra:

Dom Pavão aqui plantou
Neste largo uma palmeira,
Diz o povo que passou:
Ai Jesus, que grande asneira!

Permaneceu ali, altiva e esbelta meio século, embasada num plinto de pedra, com uma peanha à volta, para na sua sombra se reunir o concílio dos velhos do Restelo, que era um grupo de cidadãos idosos, com um certo prestígio social, que se divertiam a criticar as inovações e modernices das novas gerações.
As raízes da palmeira eram tão profundas que as chuvadas foram cavando na profundidade uma espécie de galeria que os miúdos aproveitavam para nela brincarem às escondidas. Disso se recordava com extrema saudade o Prof. Doutor Adelino da Palma Carlos quando lhe perguntei, uma vez em Lisboa, se ainda se lembrava da sua terra natal, ao que ele me retorquiu com a narração de um episódio da sua meninice passado no Largo da Palmeira, cujas raízes escavaram uma lúgubre e profunda galeria, no interior da qual os miúdos costumavam guardar o arsenal bélico das suas brincadeiras.
A Palmeira estava então situada no mesmo lugar onde hoje se encontra um quiosque, no extremo sul do largo.
Recentemente a edilidade mandou reimplantar naquele largo uma Palmeira, que embora não tendo ficado exactamente no mesmo lugar, conseguiu dar àquele recinto uma justificação para a sua designação popular, reconstituindo um espaço social aprazível e um enquadramento urbano esteticamente acolhedor.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

A Minha Rua, de Ernesto Silva


José Carlos Vilhena Mesquita

Em tempos afirmei que o livro é uma espécie de elixir contra a impermanência da vida. Sustento ainda essa convicção. Creio que o livro, verdadeira fonte de vida, mágico objecto de culto e pedra angular da civilização humana, constitui a única forma de perpetuar a existência e de combater o esquecimento, a que inexoravelmente nos parece condenar o insondável devir do tempo.
Todas as culturas, filosofias e credos, legaram à posteridade a sua mensagem materializada sob a forma de livro, ainda que esse livro se pudesse revestir de diferentes configurações, diversos sentidos e distintas designações. Desde o papiro hierático da antiguidade clássica, passando pelo pergaminho medieval até à ocidentalização do papel, o objectivo do livro foi sempre o mesmo: comunicar o pensamento, transmitir o conhecimento e legar aos vindouros a herança da História. A transformação do saber e a comunhão dos mundos operou-se através da divulgação do livro, como objecto transmissor da memória e do conhecimento. Devemos a Gutemberg a passagem do saber regional para a mundialização da ciência.
Podemos hoje afirmar sem rebuço que não há culturas superiores nem civilizações desenvolvidas sem a popularização do livro. Entendamo-nos de uma vez por todas, o livro é o melhor e mais rentável investimento das sociedades modernas, pois que é o garante da conservação dos alicerces da História de um povo e da manutenção dos seus genuínos padrões culturais.
Por isso, saudamos vivamente a iniciativa da Câmara Municipal de Aljezur pelas edições que tem vindo a patrocinar, quer sejam de promoção e divulgação das suas potencialidades turísticas, do seu património arquitectónico e da sua notabilíssima herança histórico-cultural, quer sejam do intrínseco talento literário de alguns dos seus munícipes, que são naturalmente os obreiros e os veiculadores da autenticidade cultural do povo aljezurense. São já várias as obras que poderíamos trazer à colação. De entre todas merecem destaque as obras de Mestre Emmanuel Correia, os livros de poemas de Arselino Correia e os magníficos álbuns de João Mariano, que sendo de entre todos o mais jovem, é sem sombra para dúvidas, uma das mais prestigiadas figuras artísticas de Aljezur.
A razão que justifica a minha presença na lindíssima vila de Aljezur, é mais uma vez a publicação de uma obra literária, que merecendo a chancela do município reúne em si a responsabilidade de o representar no contexto da requintada, exigente e mui nobre poesia algarvia. A terra que une este povo foi berço de grandes vates da cultura árabe e da civilização cristã, permanecendo na memória de todos as notabilíssimas obras de João de Deus, Bernardo de Passos, João Lúcio, Cândido Guerreiro, Júlio Dantas, António Aleixo, António Pereira, Emiliano da Costa, João Brás, Vicente Campinas, e tantos outros.
Não é Aljezur um alfobre de poetas eruditos que se tenham celebrizado na literatura algarvia. Logicamente a isso não o permitiu a sua dimensão económica e o escasso aparelho educacional a que tiveram acesso os seus laboriosos habitantes. São os condicionalismos da interioridade e a factura não saldada de um passado que não vale a pena dissecar. Está enterrado na poeira da história. Agora há que olhar para o futuro. E o futuro está nos valores que possuímos e na massa crítica que temos, ainda que a muitos possa parecer insuficiente ou demasiado humilde para os altos voos a que todos nos desejaríamos alcandorar. Os homens valem pela honra dos princípios que defendem e pela forma digna e leal como se batem por eles. A poesia é uma das formas mais elevadas de propugnar pelos sublimes ideais da liberdade, da igualdade, da solidariedade, da paz, da fraternidade e do amor.
São esses valores que aqui vemos estampados na obra de Ernesto Silva. De uma forma simples mas elevada, sem falsas erudições nem balofos pretensiosismos intelectuais, o autor construiu ao longo de quarenta e cinco anos uma verdadeira girândola poética, versando as mais diversificadas temáticas em singelos poemas de um inebriante perfume naturalista e duma esfuziante musicalidade popular.
Este é o seu livro de estreia. É mais um filho a juntar à sua prole, já de si distinta e mui artística, alicerçada num talento que ninguém ousa contestar. Conhecido como um mágico do barro, criador de incomparáveis figuras místicas – quem não admira os seus Cristos na cruz de ascético enlevo divino ou a recriação da docilidade animalista em frágeis bonecos que deliciam as mais inocentes crianças – Ernesto Silva revela-se agora como um escultor de palavras, um barrista das metáforas, das emoções e sentimentos mais profundos, numa expressividade que desce até aos limites da compreensão popular. Os grandes apreciadores de arte, que viam nas obras de Ernesto Silva e na inseparável Zabel Moita, o expoente da popular tradição dos barristas portugueses, podem agora enriquecer as suas colecções com este belo livro de poemas a que deu o sugestivo título de A Minha Rua, essa espécie de cordão umbilical que nos prende ao lar e à terra que nos viu nascer. Não podia ser mais criativo nem mais sugestivo. A nossa rua nunca se esquece, porque foi através dela que se nos abriram as portas da vida e nos confrontamos com os outros, percebendo rapidamente que a existência humana se espraia pelas artérias da convivência e do mútuo entendimento.
O livro de Ernesto Silva é, nesse sentido, paradigmático, porque ao longo de pouco mais de centena e meia de poemas consegue transmitir, de forma simples e ao jeito popular, os valores mais sublimes sob os quais deveria alicerçar-se a sociedade moderna. Por vezes duvidamos que assim seja, tão desencantados estamos já desta competitiva e materializada sociedade, em que tudo é ambição e egoísmo. Mas para Ernesto Silva, nesta redoma de Aljezur, o mundo conserva ainda a pureza das cores deste imaculado património ambiental que o rodeia. As raízes da família e a coesão da prole são fulcrais na sua vida, como aliás se deixa transparecer nos poemas que dedica aos pais, aos avós, à esposa e aos filhos. A expressividade sentimental atinge neles um raro nível de transparência emocional. Também profundos e sentidos são os poemas que dedica à impermanência da vida, aos entes que partiram, à sufocante solidão dos que ficaram privados da saúde ou dos sentimentos fulcrais da vida, como é o caso do amor, da liberdade, da amizade, da solidariedade ou da fraternidade. Mais vivos e alegres são os que dedica aos amigos e figuras que marcaram a sua vivência social. Da mesma estirpe se podem considerar os poemas etno-antropológicos em que retracta a vindima, a pesca, a charrua agrícola, aos quais se juntam outros que versejam sobre os Santos Populares, a Páscoa, o Carnaval, o Presépio, as Marchas Populares etc. Na sua expressividade poética chega a ser algo sorumbático quando disserta sobre coisas mais filosóficas e mais aceradamente críticas, voltando a aproximar-se do nível prazenteiro e jovial que todos lhe conhecem nos poemas naturalistas que dedica às coisas da terra e sobretudo às aves marinhas. Porque acima de tudo Ernesto Silva é um homem que preza o convívio e o companheirismo, com aquela graça e espírito irónico que tanto caracteriza o povo algarvio.
Por fim merece um destaque especial os poemas de carácter localista, com um ênfase muito especial e compreensível na vila de Aljezur que canta e enaltece com as mais vivas cores e na musicalidade peculiar dos seus versos. A vila de Odeceixe, a praia da Arrifana e da Amoreira, são objecto da sua reflexão. Mas também o são as cidades de Loulé, de Lagos e Lagoa, ou as distantes localidades de Vila Nova de Cerveira, Foz do Côa, Mirandela, Vouzela, Lanhelas, Gondomar, Idanha a Nova, Alter do Chão, Rio Maior, Santarém, Açores, etc. Terras essas que visitou como prémio do seu talento, ao dedicar-lhes belos e graciosos poemas, que poderiam ser aproveitados como retratos poéticos em folhetos de divulgação turística. E que belas são essas localidades, pelas quais passeei a minha juventude e aonde ainda volto com a família, como é o caso de Vila Nova de Cerveira, cuja autarquia soube de uma forma estrategicamente turística alcandorar-se a capital da arte moderna portuguesa.
Não quero roubar mais tempo aos que estoicamente ainda me escutam, sem concluir que o lirismo de Ernesto Silva, inspiradamente popular, revela uma enorme grandeza de carácter, uma humildade e uma simplicidade que emociona o mais incauto leitor, por vezes caldeada nalguma nostalgia, logo quebrada pela fina ironia que povoa os seus versos, num estilo que sem se despegar da alma popular atinge por vezes uma inusitada elevação filosófica.
Resta-me, mais uma vez, congratular a autarquia por saber revelar à posteridade os valores literários e culturais que engrandecem sobremaneira esta bela e encantadora vila de Aljezur.

sábado, 15 de agosto de 2009

A justiça que tarda e não funciona


José Carlos Vilhena Mesquita

Um dos aspectos mais tormentosos do nosso mediatizado quotidiano político-socioeconómico é a feição despreocupada e leviana como (não) funciona a Justiça. Confrange ver a forma vagarosa, madraça e ronceira como evolucionam os processos judiciais, cuja indolência tem vindo a contagiar inexoravelmente a vida económica, o ritmo da produtividade e o desenvolvimento social do país. A Justiça é o palco da vida, mas a forma arrogante como o aparelho forense e a magistratura usa e abusa das suas prerrogativas de imunidade e de privilégio, suscitaram em surdina uma crescente revolta contra a Soberania da Toga, desacreditando o próprio exercício judiciário.
Em boa verdade, a Justiça é um serviço de primeira necessidade e um bem essencial ao ordenamento cívico das sociedades modernas. Acima de tudo a Justiça constitui a primacial referência da honradez nacional. O foro e toda a sua envolvência humana, deveria reflectir para a sociedade uma imagem de isenção, de idoneidade e de verticalidade moral. Porém, o que vemos diariamente é o Tribunal da Boa-Hora transformado no palco mais conhecido do país, com mais exposição mediática do que o próprio Teatro Nacional de D. Maria II, ou do que a ópera de São Carlos.
A Justiça é o esteio da civilização, o arquétipo da cultura ocidental, o barro em que se modelou o Estado moderno e no qual se gizaram os direitos de cidadania. A Justiça é o sagrado bordão em que se amparam os mais fracos contra a opressão dos mais fortes. Em suma, a Justiça é a vara que padroniza a austeridade do poder judicial e o estro pelo qual medimos a sombra da verdade.
Porém, no decurso dos últimos trinta anos foi-se degradando numa progressiva desacreditação aos olhos do público. O foro parece ter-se transformado num palco onde a justiça se desenrola num espectáculo de intriga, traição, corrupção e sangue, à volta do qual se reúne o povo, apupando os criminosos e não raras vezes aclamando em triunfo certas figuras públicas (autarcas e políticos) acusadas de cometerem, ou não, os chamados crimes de “colarinho branco”.
O segredo de justiça, outrora um instrumento fulcral para o apuramento da verdade e, sobretudo, para o harmonioso desenrolar do processo judicial, é hoje constantemente desvelado e inoportunamente publicitado, fruto das espúrias relações da imprensa com o Ministério Público. Face à sociedade mediatizada e informacional em que vivemos, é lógico que os arguidos assim revelados se transformam em réus na praça pública, acusados e condenados pelas viperinas línguas e vituperiosas opiniões daqueles que, nada sabendo de justiça, querem à viva força enforcar no laço da sua maledicência muitos cidadãos inocentes, cuja honra e estirpe ficará, desse modo, para sempre conspurcada.
Pior ainda é quando os média de baixa índole e de rasteira deontologia profissional (especialmente os jornais sensacionalistas e as revistas cor-de-rosa), se divertem a devassar a vida privada dos supostos arguidos judiciais, fazendo-os perseguir por detectives privados e por “paparazis” sem escrúpulos, publicando fotos dos seus familiares e das suas relações mais íntimas, numa vasculheira sem limites que só emporcalha a nossa imprensa e putrifica a nossa, já de si paupérrima, opinião pública. A privacidade dos cidadãos vale cada vez menos, como igualmente perdeu todo o valor a noção de honra e de elevação moral daqueles que, por obra do seu génio e talento criativo, se distinguem da vil mediocridade em que vivemos. Esses têm sido, aliás, as vítimas preferencialmente devassadas pela nossa imprensa sensacionalista, tantas vezes auxiliada pela especulação boateira ou pelo esburgado segredo de justiça. Este crescente “voyeurismo” da nossa provinciana opinião pública tem sido incentivado pelos canais televisivos, através duma programação estupidificante que visa controlar e indolentar mentalmente as suas audiências. Atente-se, como exemplo, no ressuscitar do «Big-Brother», agora em moldes ainda mais aberrantes para a saúde pública mental, no qual se pretende dar a entender que as mulheres são estúpidas, ainda que bonitas, e os homens são-lhes superiores pela inteligência e pela força da erudição. Este programa é um hino ao machismo que provocará negativas influências no carácter dos mais jovens.
Retomando o fio à meada, parece-me que a vida forense tem vindo a arrastar-se placidamente, ciosa dos seus pergaminhos de privilégio e de superioridade social, num emaranhado jogo de interesses carreiristas, que não são por vezes imunes a certas influências político-partidárias. Quem vem de fora e assiste a tudo isto fica com a ideia que neste país se trabalha pouco e, por isso, tudo funciona mal, porque é quase dessa forma que funciona também a Justiça. E um país onde a Justiça é tardia, muito dispendiosa e, ainda por cima, bastante falível, perde toda a sua credibilidade.
A figura imaculada do magistrado de outrora – discreto, incógnito e reservado – que na minha juventude idealizava como a mais próxima da perfeição divina, tornou-se hoje numa vulgaríssima figura pública. Diria mesmo que os magistrados do nosso mediatismo quotidiano se expõem a um displicente e excessivo protagonismo, quase sempre desgastante e negativista para a imagem pública que lhes assiste, e que devem preservar, como fautores dum certo paradigma de justiça, embasado na ponderação da verdade, na apreciação criminal e na administração penal.
Recordo, com certa melancolia, a imagem, que ainda preservo da minha infância, da casa-do-juiz, uma moradia envolta na penumbra de frondosas árvores, em cuja misteriosa quietude nunca vislumbrei qualquer indício de vida. Ficava próxima da minha escola primária. Por ali passei milhares de vezes com os meus companheiros, na traquina garrulice da nossa meninice, que logo serenávamos, guardando respeitoso silêncio na presença das graníticas silharias daquela misteriosa mansão. Na inocência da minha infância, aquela casa era para mim como um templo, onde vivia um ermitão envolto no obscuro mistério da sua invisibilidade. A casa-do-Juiz distava do Tribunal escassas dezenas de metros, e no percurso dessa curta distância, em que também se desenrolou grande parte da minha vida, confesso que nunca vi ou conheci pessoalmente o homem-Juiz, que diziam ter fama de sábio, justo e generoso. E à distância do tempo que hoje me separam destas nostálgicas recordações, sou o primeiro a reconhecer que não obstante as qualidades que na fímbria da sua imaculada toga lhe ornavam o estro, ele era acima de tudo um homem profundamente humilde, talvez conformado com a solitária existência dum anacoreta, verdadeiro guardião do sagrado templo da Justiça.
Como vão longe esses tempos... que saudades nos deixam esses homens de sisuda honradez, que se envolviam no diáfano manto da obscuridade para não trivializarem, apoucarem ou conspurcarem a suprema, e quase sagrada, magistratura da justiça. O poder da Toga era, nesses tempos de outrora, símbolo de humildade, de recolhimento e de austero apagamento social. Que saudades...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

À procura de grandes num país de pequenos


José Carlos Vilhena Mesquita


Uma das mais recentes importações da televisão estatal é o concurso dos «Grande Portugueses». É uma espécie de inquérito nacional, de plebiscito popular, aberto à participação indistinta e anónima de todos quantos desejem participar na eleição daquele que consideram ser “o melhor” de todos os portugueses. Como não obedece a um recenseamento de eleitores nem à inscrição prévia de votantes, qualquer estrangeiro pode votar num “grande” português, o que traz para este sufrágio um carácter de abertura até aqui nunca imaginado. Qualquer cidadão pode votar por SMS, email, ou telefone. Acima de tudo o que importa é convencer as pessoas a participarem na escolha de uma personalidade com a qual se identifiquem, ou se reconheça o próprio país.
O concurso, ou melhor, este inquérito nacional já foi testado noutras nações, onde os resultados nem sempre foram os mais agradáveis. Houve casos em que antigos ditadores, políticos racistas e até criminosos públicos, foram votados para espanto dos organizadores. Em certos países, a ideia de eleger uma figura histórica que traduzisse a grandeza e heroísmo da pátria, serviu apenas para acicatar ódios e instigar seculares divergências raciais.
Não corremos, no nosso país, o risco de vermos os rebeldes primitivos, como o Remechido, o João Brandão ou o Zé do Telhado, serem votados como heróis nacionais. Já o mesmo não poderemos dizer de ditadores como Pombal, Salazar ou até mesmo Marcelo Caetano, que certamente serão votados em larga escala. Esse é, também, um fenómeno já visto noutros países.
Para já serão apuradas cem personalidades, das quais eleger-se-ão dez, até que, no último escrutínio, se proclamará o maior de todos os “Grandes”. Qualquer que seja o resultado desta primeira eleição, ficarão certamente pelo caminho muitas das figuras que emolduram de glória a nossa humilde galeria nacional. Como neste certame é legítimo votar em personalidades que fazem parte da nossa vivência quotidiana, corremos o risco de serem apuradas figuras da idiotice nacional, como o Zé Cabra, o Zé Maria, o “conde” Castelo Branco, ou as coquetes da nossa decrepitude, como a Lili, a Tita, a Cinhá, a Maia e outras recauchutadas odaliscas do nosso “jet-set”. A par dessas liliputianas figuras que alimentam as revistas cor-de-rosa e os estupidificantes canais telenovelescos da TVI e da SIC, temos ainda que contar com as figurinhas do futebol e os figurões da política. Neste caleidoscópio social, dificilmente se consegue destrinçar a virtude da corrupção, diferenciar a seriedade do oportunismo, distinguir a verdade da mentira, ou simplesmente perceber de que lado vem a traição.
Habituamo-nos a viver na paz-podre e, por isso, continuamos a acreditar nas melífluas promessas dos políticos. A falsidade, a hipocrisia, a cobardia e o aleive, fazem parte do nosso quotidiano e do relacionamento social. São anormalidades e malefícios da nossa actual e congénita cretinice. Por isso não me admira que milhares de cidadãos tenham votado nas putativas figuras públicas da nossa incultura. Certamente os portugueses votaram seduzidos pelas imagens de sucesso, pelas intrigas amorosas e pelos sucessivos desamores dos “Vip’s”, incensados pelas revistas cor-de-rosa – uma imprensa de sucateiros, especulativa e sensacionalista, cujo sucesso de mercado nos identifica como uma nação imbecilizada por uma estruturante incivilidade, por uma avassaladora ignorância, e por um moderno processo de desinstrução nacional. A inexistência de uma disciplina de História de Portugal nos programas dos diversos anos em que se decompõe o ensino secundário, acrescido do incremento da língua inglesa desde o ensino básico até ao superior, indicia, claramente, uma intenção governativa de imbecilizar uma nação através do extermínio das suas raízes culturais e linguísticas. Não discordo do ensino do inglês, apenas temo que isso induza os nossos jovens a perceberem que o que interessa é a sua integração no processo de globalização, desprezando a sua identidade, a independência cultural do país e, sobretudo, o orgulho de ser português.
Aquilo a que chamam a modernização do ensino não é mais do que a cópia dos modelos de ensino público aplicados em certos países europeus, onde a qualidade apenas subsiste no ensino privado. Ao nível do ensino superior, o resultado, nomeadamente do decantado “Processo de Bolonha”, será previsivelmente o decréscimo da qualidade, um crescente facilitismo na transmissão dos conhecimentos científicos e um laxismo na avaliação dos objectivos finais.
Vivemos num país de pilhérias, onde só os piolhosos conseguem vencer. Esta não é “a pátria minha” de Camões, mas é a “pátria nossa” do Tino de Rãs, glorificado “presidente da junta”, eleito pelo PS, que, em boa verdade, ao lado da maioria dos autarcas deste país, é um verdadeiro anjinho de coro.
Por fim, resta-me dizer que também votei nos «Grandes Portugueses». Escolhi João de Deus, porque, além de algarvio, considero que se trata de uma figura de âmbito verdadeiramente nacional. Um homem bom, generoso, sério e honrado, um grande talento nacional, sempre lembrado como o poeta do Campo de Flores e o pedagogo da Cartilha Maternal. Acima de tudo foi o inventor do método de leitura que ajudou sucessivas gerações de crianças pobres a saírem da obscura e avassaladora situação do analfabetismo e, por isso, submissas vítimas da desumana exploração que se viveu nos campos e nas fábricas deste país. Na batalha da educação nacional e na guerra contra o obscurantismo, João de Deus foi um verdadeiro herói, um grande português a quem prestei com o meu humilde voto a mais singela homenagem.
Espero que o Algarve e os algarvios não se esqueçam de, pelo menos por esta vez, se lembrarem daqueles seus filhos que, como diria Camões, “por obras valorosas se vão da lei da morte libertando”.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

20 livros de Ferradeira de Brito


José Carlos Vilhena Mesquita *

A vida é feita de experiências e para tudo existe uma primeira vez, com que nos defrontamos com o desconhecido, num desafio à coragem e à perseverança, num apelo ao destemor da nossa personalidade e da nossa inteligência. Não foi, porém, assim que me senti ou que pensei, quando de bom grado aceitei o convite para apresentar estes 20 livros de Ferradeira de Brito. Mas é assim que me sinto agora, consciente da leviandade que constitui o facto de ter aceitado tamanho desafio. A coragem com que de imediato me disponibilizei para apresentar os livros, falece-me porém agora, no momento em que dela mais necessito. É a força da consciência a fazer jus à minha irreflectida e muito imprudente anuência à hercúlea tarefa de apresentar 20 livros numa única sessão pública. A tudo isso acresce ainda a criteriosa atenção com que me escuta esta numerosa e prestigiada assembleia, na qual vejo alguns escritores movidos talvez pela curiosidade de testemunharem de um acto singular, nunca antes presenciado não só no Algarve como em todo o país.
Convenhamos que publicar 20 livros de uma assentada é acima de tudo um acto de coragem, de um autor que pretende marcar uma posição, não só pela firme evidência do seu talento e da sua polivalência literária, como ainda pela singularidade artística do seu gesto. Parece um golpe de marketing publicar 20 livros de uma só vez. Mas não. Trata-se apenas de um gesto de arte, uma manifestação da mais pura e inocente vontade de criação artística. Não se trata de uma promoção pessoal e muito menos duma estratégia comercial, ou não estivéssemos nós num país em que os hábitos de leitura são baixíssimos, como diminutos são também os índices de consumo cultural. O livro no nosso país é um produto de última necessidade. Por isso publicar 20 livros é um gesto de coragem, uma expressão de Arte e uma aventura editorial.
Apresentá-los a todos numa sessão pública não é fácil, digamos mesmo que é humanamente impossível... Começando pelo autor, importa dizer que o conheci em 1998, tendo constatado que é uma pessoa de fina sensibilidade cultural e estética, muito interessado em colaborar nas iniciativas que pudessem contribuir para o engrandecimento da sua cidade natal. Porém, apercebi-me logo do seu coração sofredor, macerado pelo desgosto de ter perdido um filho na flor da idade, sentindo-se a partir daí como um naufrago, solitário e triste, sem esperança de sobreviver incólume às tempestades da vida. Verifiquei depois que a poesia, emergente da dor que lhe corroía a alma, despontava-lhe espontânea, sincera, dolente e profunda, como uma âncora a que o naufrago de outrora se agarrava agora para escapar aos negrumes da tristeza que lhe devorava o espírito. Apoiado e incentivado pelo poeta Tito Olívio – a quem os mais próximos chamam Mestre, na mais fiel tradição humanista – acolheu-se ao convívio da Tertúlia Hélice, onde tem pontificado não só pela sua assiduidade, como também pela sua produtiva contribuição poética. Começou por escrever quadras, no mais genuíno sentimento popular, como uma espécie de humilde tentame de quem não se sente com a eloquência necessária para professar o culto de Orfeu. Mas fê-lo com tão surpreendente qualidade filosófica, talvez por inspiração aleixiana, que logo o “Mestre” o aconselhou a publicá-las em livro. Foi assim que no ano 2000 surgiu o seu primeiro livro, sugestivamente intitulado Minha Voz, a voz do povo. Tive nessa altura, tal como agora, a honra de ter apresentado a obra na já inexistente Livraria Odisseia, perante numerosa assistência.
Os escolhos da vida impediram-no todavia de continuar a publicar de uma forma mais constante a sua vasta e relevante obra poética. Acompanhei esses anos a par e passo, comungando não só das ilusões como também dos frustrantes desapontamentos, suscitados pelo alheamento a que as instituições responsáveis votavam os autores locais, dando todo o apoio, financeiro e logístico, aos que de Lisboa, com o ar superior da sua emproada soberba, nos vêem tratar como inferiores e provincianos. Quantas vezes ouvi na tertúlia os queixumes de natural repúdio contra essa espécie de colonialismo cultural a que temos estado sujeitos. Vivemos ainda hoje debaixo do centralismo, ditatorial e castrador, que caracterizou o regime anterior, cujos defeitos estranhamente continuamos a imitar. Tarda em surgir no horizonte político o verdadeiro libertador desta opressão alisbonada a que se tem submetido a cultura algarvia.
Apesar de tudo isso, e remando sempre contra a maré, Ferradeira de Brito foi dando a público, nos órgãos regionais, algumas das suas produções líricas, principalmente no «Jornal Escrito» e no «Nó Vital» fundados pela AJEA para dar maior repercussão aos escritores algarvios. As suas produções poéticas e os seus textos dramatúrgicos foram-se acumulando até hoje, em que felizmente puderam ver a luz da estampa.
Não me podendo alongar nas apreciações críticas sobre cada um deles, decidi reparti-los pelos géneros literários em que se inscrevem. Assim, começando pela difícil arte do soneto, há que realçar a publicação de sete livros, ou seja, mais de um terço da sua obra insere-se no estilo mais clássico do lirismo lusíada, no qual Sá de Miranda, Camões e Bocage foram os expoentes máximos. O primeiro destes sete livros intitula-se Tempos do meu tempo, uma espécie de auto-retrato poético em que o autor enaltece a terra-mãe, recordando a sua mocidade e os seus sonhos de rapaz, até se aperceber que na marcha lenta dos instantes em que a felicidade lhe iluminou o caminho, também os desgostos lhe enlutaram a alma, branqueando-lhe os cabelos e enrugando-lhe as faces. Seguem-se outros títulos, como O Brilho da Alma, um conjunto de sonetos intimistas a merecer leitura atenta. A mesma atenção merecem os livros Vidas da Minha Vida e de Flores do Olimpo, no qual distingo o soneto «Pétalas Mortas», que considero do mais puro e fino quilate estético. Nos livros Desbravar do Sonho e Pedaços de Vidas, observamos a dor do poeta que lancinantemente sente como seu o sofrimento alheio, num mundo cada vez mais insensível e egoísta. Ainda no mesmo âmbito, um particular realce para o livro Canto Lírico, pela singularidade de comportar duas coroas de sonetos, isto é, dois conjuntos de catorze sonetos subordinados a um tema (neste caso, Amor e Coração) nos quais o último verso de cada soneto é igual ao verso do soneto seguinte, sendo o último de todos igual ao primeiro, formando assim um círculo de relações poéticas muito difícil de estabelecer.
O género mais popular e mais querido dos algarvios é a quadra, espécie de baptismo poético de Ferradeira de Brito ao regressa pontualmente como recreação da alma. Nesse estilo inserem-se quatro livros. Começo por Alma, Coração e Mágoa, que tal como o título indica descrevem sentimentos e emoções, por vezes tristes e amargos, quase todos de uma profunda melancolia, mais filosófica do popular. O livro Rosas do Meu Jardim, é mais alegre e positivo ainda que nunca deixe de ser sentencioso e bom conselheiro, ao jeito das tradições mais peculiares deste género poético. Segue-se-lhe Povo Meu Povo, que, como o título deixa transparecer, foi concebido ao jeito popular, com humor, ritmo e musicalidade, numa simbiose rimática muito agradável e prazenteira. Por fim, o livro Enquadrando a Vida, contém um misto de quadras alegres e joviais com outras mais judiciosas e de crítica acerada, dirigidas aos instalados e aos poderosos da política, que só pensam nos seus interesses descurando o bem público e o fraternalismo social. No computo dos quatro livros apuramos um total de 544 quadras, o que convenhamos não está ao alcance de todos os poetas, sabendo nós que as ideias nelas contidas raramente se assemelham ou se repetem, quer na estrutura rítmica quer no conteúdo da mensagem.
No género da poesia livre inserem-se mais quatro livros. Comecemos pelas Rimas Musicais, que seguem os modelos tradicionais da canção popular, repartindo-se os seus versos entre cinco e oito sílabas. São muito interessantes e fáceis de musicar, sobretudo as que têm no máximo vinte versos. O livro seguinte, Poesia Desperta, é muito mais elevado no seu conteúdo filosófico, inscrevendo-se por isso no género lírico; chamo a atenção para o poema intitulado «A Teia» que é do melhor que conheço no autor. O livro Palavras Coloridas, é semelhante ao anterior, mas mais positivo, mais apaixonado e menos depressivo. Por fim, Giestas e Rosmaninho, que tal como o título indica, tem uma inspiração mais popular e naturalista do que os anteriores, sendo que em todos eles é o parnasianismo, na sua expressão mais elevada, que os distingue e melhor diferencia no conjunto da obra de Ferradeira de Brito.
Por fim, há dois livros de poesia que se desligam do tronco comum das quadras e dos sonetos. O primeiro intitula-se Meu Canto Meu Pranto, é um livro de sextilhas muito curiosas, cheias de vida e de ritmo, que sem deixarem o classicismo que as inspira, tem um leve toque popular que lhes dá a alma e o sabor da tradição algarvia. O outro, Sabor a Terra, é um exercício de paciência e de inspiração poética, pois que contém dezoito poemas obrigados a mote, cuja concepção não é tarefa fácil, mesmo para os poetas mais experimentados.
Termino com os livros de teatro, que são três, sobre os quais muito haveria para dizer se a tanto nos disponibilizasse o tempo. O primeiro intitula-se O Poço, e tem um enquadramento muito regionalista, passado entre mareantes e agricultores segundo creio da freguesia do Montenegro. O segundo intitula-se O Boato, e refere-se àqueles primeiros tempos da revolução de Abril, em que o país estava em constante remodelação política. O melhor de todos os livros é O Milagre do Mar, uma obra que merece ser levada à cena talvez no nosso teatro municipal com uma companhia de actores profissionais que saibam expressar a qualidade regionalista da obra.



* Resumo do texto de apresentação pronunciado na Biblioteca Municipal de Faro

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Economia e Cultura – uma reflexão intimista


José Carlos Vilhena Mesquita

Ninguém hoje duvida que a riqueza das nações - ao contrário das suposições de Adam Smith, contidas na obra mater da Economia - não consiste na extensão territorial, no aumento da produção industrial nem no domínio imperialista das relações comerciais, conducentes à acumulação do capital nas mãos da burguesia. As suas ideias, que fizeram furor e constituíram o fundamento da doutrina político-económica do liberalismo, não estando totalmente ultrapassadas, por influência do neo-imperialismo anglo-americano, foram, todavia, progressivamente combatidas pelos movimentos democráticos a que se sucederam as modernas perspectivas do pensamento económico. A ideia de riqueza, planeada na concepção do capital (fundiário e fiduciário), intuído sobre a forma de propriedade e de bens transaccionáveis, impunha noções de acumulação, de domínio e de concentração absolutamente contrárias à liberdade e à dignidade humana. Significa isto que a riqueza das nações reside em factores materiais de capitalização extrínseca a que deverá suceder-se uma distribuição constitutiva da riqueza intrínseca. Em suma, a riqueza ou o capital só terá sentido quando os bens materiais contribuírem para o engrandecimento dos bens espirituais, a ponto de encontrarem um equilíbrio harmonioso entre crescimento e desenvolvimento.
No fundo, parece-me que a riqueza das nações não deve fundamentar-se no aumento ou crescimento do capital, mas antes no aproveitamento ou desenvolvimento dos recursos naturais, que induzirão ao investimento nos recursos humanos. Serve isto para dizer que a riqueza está em nós, é humana e intrínseca, porque a riqueza que está à nossa volta é usufruto ou propriedade alheia. Somos todos herdeiros do incontornável binómio que serviu de berço à civilização humana: o ambiente-cultura. Isto é, o meio natural originou, ou condicionou, o despontar da sociedade e o florescimento da economia, cuja simbiose constitui aquilo a que chamo cultura. Portanto, a cultura é o culminar de um vasto processo de aproveitamento e rentabilização do meio ambiente, concernente à satisfação das necessidades materiais de sobrevivência, cuja produção e transformação de excedentes constitui a sua economia. Temos, pois, que progresso e crescimento são noções teóricas do desenvolvimento económico, que não dependem unicamente dos factores materiais de valorização extrínseca, mas antes da cultura e das mentalidades dos povos a que dizem respeito. A valorização cultural e mental da riqueza é que incrementa a riqueza, mesmo que não se disponha dos meios imediatos para a sua implementação.
Os exemplos desta premissa estão em vários cantos do mundo, espalhados pelos cinco continentes. Nuns casos melhor sucedidos do que noutros, conforme se harmonizaram os factores de regulação social, religião, regime político e modelo económico. Sem querer particularizar exemplos, nem especificar os modelos preconizados ao longo dos tempos, diremos que foi no Velho Continente - na europeização da economia-mundo, no eurocentrismo cultural e na etnogenia ocidental - que se ergueram os melhores exemplos de sucesso e se consubstanciou a civilização europeia.
Nesta reflexão, partindo do geral para o particular, percebe-se, em parte, as razões, aqui não especificadas, do nosso neguentrópico sucesso económico-cultural. Isto é, a nossa economia assentou ao longo dos tempos em fundamentos de cariz mental e religioso, com assentimentos culturais de reduzida profundidade ou de frágil identificação. Foi assim na nossa diáspora pelo mundo, na nossa infrutífera colonização, de que tão pouco usufruímos, a não ser a miscigenação (mais do sangue do que da cultura) de que tanto se ufanava o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre. Em suma, fomos e viemos, desse mundo inóspito e distante, cujas desconhecidas rotas desvelamos, como que abrindo as portas à civilização ocidental, da qual somos apenas um pequeno povo numa nesga peninsular, debruçados sobre a imensidão oceânica.
Voltamos à nossa dimensão original, porventura mais ricos de experiência espiritual do que de sucesso material, permanecendo pobres e pequenos, mas sempre orgulhosos da nossa cultura, que, ao invés do que se supunha, revelou-se frágil e escassa, desagregada, desenraizada e tendencialmente perecível. O mito do quinto império, com que o Padre António Vieira pretendeu pejar o nosso imaginário – esse quimérico cavalo de Tróia com que pretendíamos conquistar o mundo - afinal revelou-se num fantoche erguido nas carcomidas tábuas das velhas naus do império.

domingo, 9 de agosto de 2009

A Cultura do Medo


José Carlos Vilhena Mesquita

O longo período da Guerra-Fria que durante quase meio século atormentou as nações do mundo ocidental, parece estar hoje completamente debelado. Porém, durante esse período o mundo temeu que o futuro se transformasse numa regressão civilizacional, num retrocesso às cavernas. Instituiu-se uma espécie de Cultura do Medo, uma vivência político-militar assombrada pelo tenebroso espectro do holocausto nuclear. Foi um período marcado pelo arsenalismo bélico e pela invenção de movimentos pacifistas, sob o lema “make love not war”. Ao mesmo tempo foi um dos períodos de maior progresso tecnológico neste milénio, proliferando em simultâneo as artes, as letras e sobretudo as ciências, bastando para o efeito analisar as áreas em que foram atribuídos os Prémios Nobel. Nunca o conceito da Paz teve tanto significado…
A questão que se coloca agora é a de sabermos se efectivamente vivemos em paz, em segurança e sem receio do futuro.
A política de abertura e transparência, “Glasnost”, associada ao imprescindível processo de reconstrução e reestruturação, “Perestroika”, implementado por Mikhail Gorbachev e aprovada em 1986 no 27.º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, marcou o início de uma nova era – o fim do imperialismo soviético. O desastre da guerra do Afeganistão, o depauperamento das finanças públicas e o crescente aumento da dívida externa, obrigaram a antiga URSS a enveredar por políticas de aproximação ocidental. Os resultados foram quase imediatos – aumentou a contestação pública e tudo se desmoronou. Em 1989 derrubou-se o muro de Berlim, caiu o governo da RDA e a unificação alemã ocorreu dois anos depois. No verão de 1991, dissolveu-se o PC soviético. Na Roménia fuzilaram o ditador Ceausescu e os restantes países da “cortina de ferro” (Bulgária, Hungria, Países Bálticos, etc.) libertam-se do jugo soviético. Acabou o Pacto de Varsóvia e a URSS deu lugar a uma incipiente CEI (Comunidade dos Estados Independentes), composto por onze países, sob a protecção do poder militar da Rússia, que é ao fim e ao cabo a única potência do Leste europeu.
O resultado prático do desmantelamento do socialismo soviético e do abatimento da “cortina de ferro” consistiu na emigração em massa de trabalhadores (qualificados ou não), uma espécie de invasão pacífica de mão-de-obra barata, que durante décadas se viu impedida de fugir para o ocidente capitalista à procura de melhores oportunidades de vida. As remessas financeiras desses milhões de emigrantes, oriundos das antigas nações soviéticas, tornaram-se no balão-de-oxigénio das respectivas economias nacionais. Por estranho que pareça foram os países do ocidente capitalista, anteriormente demonizados pela propaganda soviética, os herdeiros involuntários da falência do modelo socialista.
Nos finais da década de noventa, já depois da Guerra do Golfo e das Nações Unidas terem-se declarado hostis às tiranias, às purgas étnicas nos Balcãs, à marginalização das minorias, ao racismo e à desterritorialização de nações ancestrais, como a Palestina ou o Curdistão, o mundo encaminhou-se para uma nova e incontornável realidade, baseada na supressão das fronteiras políticas e socioculturais. Nascera o mundo da Internet, a Era da Informática ou da instantânea comunicação a longa distância, que transformou as nossas vidas de uma forma radical. A este fenómeno sociocultural (que mais não é do que o refinamento do moderno imperialismo capitalista) chamaram-lhe Globalização. A vida quotidiana informatizou-se, isto é, passou a depender da instantaneidade dos meios de comunicação, do desenvolvimento e rapidez dos transportes de pessoas e bens, dando lugar a um neocolonialismo não só dos países mais desenvolvidos, como sobretudo das empresas transnacionais que pressionam as nações mais desfavorecidas a abdicarem das políticas pautistas de protecção económica, e apregoam nos areópagos internacionais os miríficos benefícios do livre-cambismo ou da liberalização das trocas. O regime político mais comum ao fenómeno da globalização é o demo-liberalismo, e o sistema económico que lhe anda vulgarmente adstrito é o Capitalismo.
A “Guerra-Fria” desapareceu com a implosão do bloco socialista, precisamente por este ser antagónico às liberdades individuais, aos direitos humanos e à economia de mercado. Portanto, tudo indica que a Democracia e o Capitalismo são os sistemas socioeconómicos mais equilibrados e humanistas. Com esta asserção parecia antever-se uma nova aurora na Civilização Moderna. Mas o diálogo Norte-Sul e a segmentação económica do desenvolvimento industrial, criaram mundos diferentes e barreiras mentais difíceis de superar, impossíveis de homogeneizar, sobretudo quando lhes estão subjacentes culturas e religiões ancestrais. A ilusão de um mundo mais humanizado – estribado na defesa dos Direitos Humanos, pacificador e desanuviador do espectro duma guerra nuclear – durou escasso tempo, porque os interesses do Capitalismo Financeiro (obscuro, apátrida e imperialista), entrechocaram-se com os valores ancestrais do Sagrado e do Profano.
Faltou ao primeiro-mundo, inspirado nos modelos da civilização ocidental, a coragem necessária para (debelado o espectro da Guerra-Fria) enveredar por uma opção política mais solidária e mais enérgica na supressão dos flagelos da Humanidade: o racismo, o analfabetismo, a pobreza, a fome e a doença. Estes são, desde há séculos, os martírios da civilização, suscitados pelo desenvolvimento desigual, em larga medida provenientes do colonialismo e do imperialismo, as duas faces da mesma execrável moeda. Ao invés duma “cruzada” contra a fome e a doença no terceiro-mundo, optou-se por um cúmplice alheamento das verdadeiras causas da pobreza-estrutural. Em parte, podemos afirmar que os grandes flagelos da Humanidade são resultantes do processo evolutivo daquilo a que chamamos Globalização. Lamento dizê-lo desta forma. Na verdade, assistiu-se à criação dum mercado financeiro mundial (capital volátil) a partir da união de mercados e da quebra de fronteiras físicas e políticas entre esses mercados, cujos benefícios quase nunca redundam positivos para as fontes produtivas ou para os mercados regionais. Vive-se hoje numa integração cada vez maior das empresas transnacionais (apátridas e imperialistas) inseridas, e prevalecentes, no contexto mundial do livre-comércio, operando em diferentes países (sobretudo em regiões subdesenvolvidas), explorando em seu único benefício as condições proporcionadas pelos baixos custos de produção. A vida social e cultural em regiões muito distantes da Europa foi claramente afectada pelas influências internacionais, suscitadas pela injunção político-económica dos países desenvolvidos. Esta situação criou nos países árabes um ódio crescente à globalização e sobretudo ao imperialismo económico anglo-americano.
A cultura ocidental, materialista, individualista e próspera, submetida à divinização do Dinheiro, entrou em colisão com a cultura oriental, espiritualista, pobre e submissa, cuja vivência socioeconómica reflecte as premissas corânicas do islamismo. O resultado da interferência ocidental, sobretudo do imperialismo americano, tem sido pernicioso. A Guerra do Golfo e a recente invasão do Iraque tem suscitado uma alta de preços do petróleo e o descalabro das economias dependentes, de que é exemplo o nosso país.
Pior do que o processo inflacionário tem sido a onda de insegurança urbana, suscitada pelo terrorismo islâmico, que é a suprema expressão da Cultura do Medo. Terminada a Guerra-Fria eis que desperta a guerra surda, o terror branco, a sombra do anjo da morte inserida no corpo franzino de um jovem kamikaze. Os ataques do 11 de Setembro são a ponta do icebergue, que teve a sua continuidade na gare ferroviária de Madrid ou no Metro de Londres. O mundo acordou da guerra-fria para a guerra-santa, com a diferença de antes ser mais difícil morrer em nome de um ideal, do que agora em nome de um Deus redentor. A cultura ocidental cristã, nunca imaginou o suicídio religioso, que à luz do nosso raciocínio é simplesmente um acto criminoso e cobarde em nome de um Deus maior. Voltaram as Cruzadas, a Ghiade islâmica da era global, ergueu-se o Eixo do Mal e instaurou-se a Cultura do Medo.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Sagração das Igrejas do Algarve


Os prelados da diocese de Faro procederam em diferentes alturas e por decreto episcopal à sagração dos principais templos da região.
A identificação dos templos sagradas pode fazer-se através da observação nas paredes internas das igrejas da existência de doze cruzes de pedra, que simbolizam os doze apóstolos.
Normalmente a data da sagração de cada templo tornava-se num dia festivo, ficando as dozes cruzes ornadas com flores, queimadores de incenso e uma vela que deveria arder durante um dia inteiro. Nesse dia rezava-se missa em honra do santo a que a igreja era votada. Todas as igrejas que no Algarve foram sagradas possuem uma data fixa, geralmente a do decreto episcopal, à excepção de Lagoa que optou pelo primeiro domingo de Setembro. As restantes ficaram assim ordenadas:

Sé de Faro – 19-7-1943
Albufeira – 15-6-1800
Azinhal – 10-9-1916
Lagoa – 4-9-1814
Aljezur – 10-9-1809
S. Brás de Alportel – 2-5-1802
Cacela – 7-9-1806
St.ª Maria de Tavira – 4-5-1800.

Como se constata pelas datas pertenceu ao Bispo D. Francisco Gomes do Avelar o maior número de consagração de templos.

Quadras populares de Poetas algarvios


Há muita gente que julga que os mais consagrados poetas do Algarve não se interessavam pela poesia popular. Nada mais errado. Até mesmo o Fernando Pessoa escreveu muitas quadras populares, que serviram para vender dezenas de manjericos, durante anos a fio, no Cais do Sodré, ou junto à estátua equestre do D. José, nas noites festivas de S. João e de St.º António.
Para que sirvam de exemplo, aqui ficam, extractadas da imprensa da época, algumas quadras populares de poetas consagrados do Algarve:

Não digas que me amas
A ver se tenho ciúme;
Os laços de amor são chamas
E não se brinca com lume.

João de Deus

Deus criou o sol num dia
E noutro fez o luar.
Mas, p’ra fazer os teus olhos,
Levou um ano a pensar

João Lúcio

O que eu te falo em segredo,
- o que eu converso contigo -
... nas mágoas que te não conto,
nos sonhos que te não digo!

Bernardo de Passos

Beijos puros não há hoje,
Nem mesmo esses que eu te dei!
- Eu sei lá quem tu beijastes!
Sabes lá quem eu beijei!

José Dias Sancho

Ora loira, ora morena,
tanto te mudas, te pintas
que talvez te valha a pena
um marido “troca tintas”.

António Santos


Ó alcachofra, Deus queira,
Por amor de nós, os dois,
Que tu morras na fogueira
E ressuscites depois.

Emiliano da Costa

Quem me dera ver-te doido
- Duvidas ?... Pois é assim –
Quem dera ver-te doido,
Mas doido de amor por mim.

Maria de Marim Marques

Nas voltas tontas do mundo
Mais tonta coisa não vi,
Tu, tonta, à roda dum mastro,
E eu, à roda de ti!...

Armando de Miranda

Eu sei que gostas de mim,
Embora digas que não:
A boca nem sempre diz
O que sente o coração.

Isidoro Pires

Os meus olhos choram sempre
Quando me lembro, meu bem,
Como foi que tu morrestes,
Sem que eu morresse também!...

Lutgarda de Caires

Quem tem amores tem penas;
quem não ama penas tem:
- Abençoadas as penas
que me vens dando, meu bem!

Vitória Régia

Meu amor, vê se te ajeitas
a usar meias modernas,
dessas meias que são feitas
da pele das próprias pernas.

António Aleixo

domingo, 2 de agosto de 2009

O nosso patusco ministro da Economia


J. C. Vilhena Mesquita

Toda a semana se falou, no país e no estrangeiro, da tão infeliz quanto irresponsável cornígera sinalética “investida” pelo ministro da Economia, Manuel Pinho, em pleno congresso da Nação, contra um deputado da bancada comunista. O país ficou arrepiado com o ordinário gesto, emitido em directo pela televisão por uma alta figura do Estado, muito peculiar na sarjeta social onde coabitam os inadaptados sociais, os excluídos e marginais, assim como toda a casta de deserdados e desfavorecidos da sorte. Ninguém se admiraria, porém, que houvesse alguém que apontasse ao ministro os diabolizantes indicadores em protesto contra a deprimente condição em que se encontram os milhares de desempregados vítimas deste governo.
Razão tinha o imperecível Eça quando designava por simples “patuscos” os ministros que no seu tempo se assemelhavam ao nosso Manuel Pinho. Só que nesse tempo havia mais patriotismo do que hoje, e em vez do espanholado gesto taurino os nossos políticos optavam pelo luso “manguito” imortalizado por Bordalo Pinheiro na estereotipa figura do Zé Povinho.
Todavia, o ministro da Economia e da Inovação (esta da “Inovação” é de cabo de esquadra), nestes quatro anos de governo, insistiu em fazer alarde da sua confrangedora inépcia mental através de monumentais deslizes políticos. As suas gaffes tornaram-se verdadeiras pérolas da laracha popular. Diz-se que estava em acesa compita com vários outros ministros para ser laureado com a medalha de cortiça do Prémio Nacional do Ridículo. Para atingir esse galardão, lembremos a visita de Sócrates à China na qual o ministro Pinho tentou convencer os empresários do “capitalismo comunista” a investirem em Portugal, assegurando-lhes que a nossa competitividade no seio da Europa resultava dos baixos salários que auferem os nossos trabalhadores. Os privilegiados da Nomenclatura chinesa ficaram desiludidos, porque investir em Portugal pareceu-lhes o mesmo que reinvestir na China. Mas o que os chineses não sabiam é que, poucos dias antes, o ministro havia escoiceado os sindicatos portugueses, acusando-os de instigarem a falta de competitividade do país no seio da Europa por causa dos altos salários que os nossos trabalhadores auferem. Isto é, o ministro mudava de opinião conforme as circunstâncias e as conveniências. Creio que como político e como pessoa ficou claramente definido como um impagável “patusco”.
Depois de asnear a torto e a direito, só falta saber quem foi a azémola que meteu na cabeça do ministro a ideia de criar a marca Allgarve, alterando de forma abusiva a honrada designação de um território, e de um ancestral reino, muito mais antigo do que o próprio espaço nacional. Parece que o ministro foi na conversa dum criativo de marketing a soldo duma empresa inglesa. Mas o que o homem fez foi espetar dois ll na cabeça do ministro, convencendo-o de que assim ficava mais bonito, porque convinha que o Algarve fosse literalmente todo inglês (all significa tudo). Isto era claramente o prenúncio da natural simpatia do ministro pelos “palitos” que em riste investiu contra a bancada oposicionista, há alguns dias atrás.
A apresentação deste aborto publicitário, ou mais propriamente deste ultraje ao povo algarvio, fez-se com pompa e circunstância, e só não deu grande celeuma porque o ministro prometeu gastar vários milhões de euros na campanha de promoção do Allgarve. Os empresários dos mais diversos quadrantes, esfregaram as mãos de contentes, os apaniguados da política vigente escaldaram as mãos com frenéticos aplausos, enquanto outros escondiam as mãos em concha por detrás das costas, à espera do deles, como fazia o Abreu!!!. Por isso é que a celeuma morreu à nascença, já que os acostumados oportunistas esperam encher os bolsos com mais esta cretinice dos nossos políticos. Tem sido sempre assim. É por isso que estamos na cauda da Europa.
Dizem que o ministro ainda pensou estender a graçola à designação do próprio país, que para fins de promoção turística passaria a escrever-se Portugall, para agradar aos ingleses e aos americanos, que assim ficam cada vez mais com a certeza de que somos uma nação subserviente, e um país de chapados imbecis. Seria óptimo se ministro desse também o exemplo e passasse a grafar o seu nome à espanhola, Piño, pois que grande parte da nossa economia já está nas mãos de nuestros hermanos.
Perante o despautério governativo e as constantes calinadas políticas, creio que José Sócrates aproveitou a cornígera momice para se ver livre do “patusco” ministro, dando desse modo uma imagem de força, autoridade e intolerância perante o insultuoso gesto de quem nunca deveria ter pertencido a este governo.