sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Filipe Viegas Aleixo, um revolucionário de cuja memória o Algarve se orgulha

J. C. Vilhena Mesquita

Reputado activista sindical e lutador antifascista, Filipe Viegas Aleixo foi também um conceituado publicista e grande estudioso das modernas correntes filosóficas. Era familiar do poeta António Aleixo e do Dr. Vítor Aleixo, que foi presidente da Câmara Municipal de Loulé.
Originário de uma família burguesa de largas posses económicas, nasceu em Loulé a 22-8-1915 e faleceu na mesma cidade a 10-08-2000, mas nos estudos, não foi além da instrução primária. Ainda jovem ficou órfão de pai, tornando-se administrador dos bens familiares. O gosto pela leitura fê-lo admirador das correntes democráticas, e não raras vezes tornava públicas as suas discordâncias políticas, denunciando as desigualdades sociais que então minavam a sociedade portuguesa. Por isso foi preso em 1943 pela PIDE, que sem julgamento o deixou encarcerado até 1945. Empregou-se em 1948 na SECIL mas para fugir à PIDE emigrou em 1953 para São Paulo, no Brasil, onde participou activamente no Movimento Portugal Democrático até 1955. Nesse ano partiu para El Tigre, na Venezuela, onde acabava de ser deposto o ditador Perez Gimenez, inscrevendo-se então na Junta Patriótica Portuguesa de Caracas. Nos anos do pós-guerra pensava-se que as autocracias e o colonialismo tinham os dias contados. Salazar e Portugal eram um dos principais alvos a abater. E quando em 1959 o capitão Henrique Galvão - um dos grandes colonialistas portugueses convertido em democrata - se refugiou na Venezuela começou a preparar uma manobra política que atraísse a atenção do mundo. Decidiu-se por uma acção de pirataria marítima e aproveitando a atracagem do navio «Santa Maria», organizou o seu assalto recrutando um grupo de vinte e um improvisados operacionais. Um deles foi precisamente Filipe Viegas Aleixo, que na noite de 21 para 22 de Janeiro de 1961 tomaram o comando do navio, numa mediática acção política que abalou a “paz podre” do salazarismo e abriu caminho à revolta armada nas colónias africanas.
Terminada a aventura do «Santa Maria» aportou no Brasil, como exilado político, mas em 1964 já está em França ao lado de Palma Inácio para tentar entrar em Portugal, mas é preso por influência da PIDE em Grenoble. Felizmente foi libertado a pedido dos movimentos democráticos que apoiavam os activistas portugueses no exílio. Mas em 1968 entrou clandestinamente em Portugal, sendo detido logo em Agosto na vila de Moncorvo e remetido para o Porto, onde viu reconfirmada a pena de prisão que lhe fora atribuída pela acção contra o «Santa Maria». Transferido para o forte de Peniche aí permaneceu até ao «25 de Abril», altura em que viu finalmente ser-lhe restituída a tão almejada liberdade, desiderato de quase uma vida dedicada à conquista dos altos valores democráticos. Voltou então para Loulé onde foi integrado nos quadros efectivos do município, dedicando-se à actividade sindical até 1985, data da sua aposentação. Em reconhecimento do seu esforço pelas liberdades individuais e colectivas foi agraciado, em 28-5-1998, pela edilidade louletana com a Medalha de Mérito Municipal Grau Prata. No ano 2000, mais precisamente em Março, e ainda na plenitude das suas faculdades intelectuais, mandou editar o livro Lições de Filosofia: dos mais variados ramos da actividade humana à luz da ciência, no qual compilou um conjunto de textos relativos aos mais diversos problemas socioculturais que afligiram a humanidade neste século. A forma desinibida e quase “naive” como interpreta os conceitos filosóficos ou como encara as ideologias modernas, conferem a este livro não só um carácter muito particular como ainda uma leitura bastante invulgar. Nesse mesmo ano de 2000, mandou também às suas expensas editar aquele que foi o seu derradeiro livro intitulado As crianças são a razão da vida e a alma do conhecimento humano, dirigido à formação moral e intelectual dos mais jovens
A sua adiantada idade e precário estado de saúde forçou o seu recolhimento a um lar de idosos onde pouco depois viria a falecer. Acima de tudo, Filipe Viegas Aleixo deve ser lembrado pelas gerações vindouras como um revolucionário anti-fascista, cuja vida de sacrifício e de permanente combate pela liberdade, dava certamente para escrever um verdadeiro romance.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

José Azinheira Rebelo, um homem da cultura algarvia quase esquecido

J. C. Vilhena Mesquita
Conheci de forma esporádica e quase fugaz o conhecido colaborador da imprensa algarvia José Azinheira Rebelo. Era um homem de bom coração, sempre disposto a ajudar os mais desfavorecidos, e sempre muito preocupado com a conservação do património histórico e cultura do seu Algarve, sendo que como olhanense era dos mais fervorosos amantes daquela vila piscatória. Por tudo isso, mas também por ter sido um assíduo jornalista, não só da sua terra-natal como também de todo o Algarve, não pode permanecer esquecido na memória dos vindouros. É em honra do seu bondosíssimo carácter e do seu afectuosos algarviismo aqui lhe traçamos um breve esboço biográfico.
José Azinheira Rebelo, nasceu em Olhão a 12-1-1925, e aí faleceu a 8-4-1999; era filho de João Arcanjo Rebelo, antigo solicitador forense, e de Clarisse Luísa Azinheira Rebelo, ambos naturais de Olhão e há muitos anos desaparecidos. Fez apenas a instrução primária, concluída na Escola mista de Brancanes, começando a trabalhar aos 11 anos de idade como marçano numa loja de Olhão. Aos 17 anos era empregado de escritório num armazém industrial, passando depois por uma oficina de serralharia até chegar a vendedor de uma empresa de Lisboa, de cuja delegação em Faro chegou a ser gerente. Aos 36 anos estabeleceu-se em Faro com uma loja de ferramentas, máquinas e artigos para a indústria, a qual deixou aos 66 anos de idade.
Quando jovem fez uma breve incursão pelo MUD-Juvenil, com vista a fundar uma secção desportiva em Olhão, valendo-lhe essa ousadia a classificação de “politicamente desafecto ao regime”. Dedicou-se a partir de então ao Escutismo, fundando em 1945 o jornal «Alvorada» da Patrulha Egas Moniz do Grupo n.º 6 dos Escuteiros de Portugal, em Olhão. Desempenhou vários cargos de relevo no escutismo algarvio, defendendo escrupulosamente a mensagem de Sir Baden-Powel, chegando mesmo a ser condecorado pelos serviços prestados com a medalha «Assiduidade». Foi também um apaixonado do basquetebol, tendo representado os seguintes clubes: Os Olhanenses, o Ginásio Olhanense, o Sporting Olhanense e Os Bonjoanense, de Faro. Mas à política só voltaria após o «25 de Abril» para ser eleito membro da Junta de Freguesia da Sé, tendo depois colaborado no 1.º recenseamento da Câmara Municipal de Faro.
Apologista do espírito associativo, José Azinheira Rebelo pertenceu em 1953 à Direcção do Clube Desportivo OS OLHANENSES; a partir de 1971 cumpriu dois mandatos como tesoureiro em duas Direcções do Circulo Cultural do Algarve, no qual criou um curso de artes plásticas que teve como mestres o pintor Tó Leal, de Olhão, e o consagrado artista Manuel Hilário de Oliveira. A partir de 1975 foi tesoureiro da Aliance Française, em Faro, secretário da Direcção e depois Presidente da Assembleia Geral do Clube de Futebol Os Bonjoanenses, de Faro. Foi membro do Conselho Técnico da ACRAL - Associação dos Comerciantes de Faro, e mais tarde presidente do Conselho Fiscal. Em 1983 cumpriu um mandato como Presidente da Direcção da COPOFA - Cooperativa de Consumo Popular de Faro, da qual também foi depois presidente da Assembleia Geral. Durante quase dez anos foi presidente do Conselho Fiscal do Cine Clube de Faro, tendo sido homenageado como sócio honorário em 1997.
O seu percurso como colaborador da imprensa regional iniciou-se em 1947, na «Gazeta do Sul» de Montijo, passando depois pelas colunas da «Gazeta de Olhão» (1951), «Sempre Fixe» (1955) «O Olhanense» (1963), «Fraternidade» (1963), «República» (1965), «Algarve Ilustrado» (1968), «A Voz de Olhão» (1970), «Jornal do Algarve» (1992), «Jornal Espírita» (1993), e «Brisas do Sul» (1997), entre outros. Os temas sobre os quais escrevia nas colunas dos jornais eram o escutismo, o desporto, o espiritismo, o anti-tabagismo, a intervenção social e a cultura algarvia. Infelizmente nunca publicou nenhum livro, mas tinha uma obra pronta a editar e, inclusivamente, já prefaciada pelo nosso amigo, já falecido também, Vitoriano Rosa, que foi um dos mais prestigiados jornalista do «Correio da Manhã». Essse seu livro deveria ter por título Brisas do Mar Olhanense, mas condicionalismos de vária ordem impediram que o José Azinheiro Rebelo tivesse o prazer de ver o seu livro editado. Quem sabe se com o apoio da Câmara de Olhão e a colaboração da AJEA Edições não se poderia dar a obra à estampa. Aqui fica a sugestão, acrescida da saudade que nos deixam os amigos que nunca se esquecem.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Diamantino Piloto, um mago da guitarra e das letras olhanenses


J. C. Vilhena Mesquita

Embora não tivesse sido uma das figuras mais notáveis da cultura algarvia, não deixa de ser verdade que o Diamantino Piloto foi um homem de raros talentos, particularmente predestinado para a música, mas também para as letras, cujo talento e mérito intelectual lhe permitiu alcandorar-se aos lugares cimeiros das artes e da literatura regional.
Conheci-o já em avançada idade, quando já se encontrava doente, cansado e algo resignado à velhice, que lhe tolhia os movimentos e o impedia de dedilhar a sua viola com a mestria a que nos havia habituado desde há longa data. Quando o estado de espírito desanuviava, então dava largas ao seu talento escrevendo belos contos sobre a sociedade olhanense, dos tempos em que as fábricas de conservas despontavam pela vila e os pescadores desafiavam as lonjuras do mar. Era um homem culto e talentoso, que por mérito próprio se impôs como Engenheiro-técnico electromecânico, professor, músico e publicista.
Diamantino Augusto Piloto nasceu em Tavira a 24-5-1922, no seio duma família de operários da indústria conserveira radicada em Olhão, e aí veio a falecer em 7-3-2000. Após a instrução primária empregou-se como serralheiro, contra a vontade do pai que sendo um homem inteligente e autodidacta cuidou de preparar o filho para o exame do 1.º ciclo em que ficou aprovado. Apesar de ingressar no Liceu de Faro quando chegou ao 5.º ano transferiu-se para a Escola Industrial a fim de frequentar o curso de serralharia, que também não concluiu. Admitindo os erros da juventude, decide então preparar-se, mais uma vez externamente, para a admissão ao Instituto Industrial de Lisboa, onde viria em 1947 a terminar o seu curso de electromecânica. Entretanto, notava-se nele uma grande propensão para a música, nomeadamente para a guitarra clássica, em que viria a revelar-se um exímio executante. Por isso, reparte o seu tempo de engenheiro com a música, recebendo lições do Prof. Duarte Costa, que lhe augurou um futuro brilhante. Todavia, em 1947 aceita o lugar de professor de Matemática nas Escolas Técnicas de Faro e de Olhão, para quatro anos depois ser chefe da Secção de Pesos e Medidas na Inspecção Geral dos Produtos Agrícolas e Industriais, que trocará, em 1962, por um lugar de chefe da secção de Métodos e Estudos na Federação dos Municípios do Distrito de Faro, acabando por se reformar no quadro superior da empresa Electricidade de Portugal.
No premeio deste périplo laboral dedica-se às letras, escrevendo nos órgãos regionais sobre a ética desportiva, os problemas sociais dos trabalhadores, a protecção da pesca algarvia, os problemas da cultura operária e a educação dos mais desfavorecidos, etc. Estreou-se nas páginas do Boletim do Clube Os Olhanenses, prosseguindo depois nas colunas da «Gazeta do Sul», «Correio Olhanense», «Algarve Ilustrado», «Notícias do Algarve», «Jornal do Algarve», «Postal do Algarve» e, sobretudo, em «O Olhanense», do nosso saudoso Herculano Valente. A sua veia literária começou a revelar-se nas colunas de alguns desses jornais, nomeadamente através da publicação de contos sobre a vida castiça olhanense, alguns dos quais fez submeter à apreciação de conceituados personalidades que ao tempo compunham os júris dos Jogos Florais. E neles chegou a ser premiado por diversas vezes.
Apesar das suas naturais aptidões literárias, reconhecia-se-lhe também uma grande capacidade para a música, chegando a fazer parte de um grupo de notáveis melómanos da burguesia olhanense. Os seus concertos de guitarra clássica ficaram na memória dos anos cinquenta, numa terra em que Bernardino da Silva ou Fernandes Lopes fizeram alarde duma grande erudição, e duma consequente educação musical que aparentemente estaria desenquadrada do ambiente piscatória daquela vila. Quando em 1965 a pianista Maria Campina, que conhecia e apreciava o seu talento musical, veio dirigir o Conservatório Regional do Algarve não se esqueceu de o convidar para o corpo docente, lugar em que permaneceu praticamente até ao fim da sua vida. A maior parte dos jovens que no Conservatório de Faro aprenderam a dedilhar uma guitarra clássica fizeram-no pela mão do Diamantino Piloto.
Na vida associativa foi Presidente da Assembleia Geral de Os Olhanense e da Sociedade Recreativa Olhanense, chegando a Vice-Presidente do Sporting Clube Olhanense. Nas agremiações por onde passou deixou atrás de si grupos musicais, boletins informativos e bibliotecas, numa clara e salutar dedicação à cultura e instrução dos mais desfavorecidos. Na RDP/Algarve manteve um programa de grande aceitação nacional, a que deu o título de «Lugar ao Sul», premiado pelas instâncias superiores devido à sua larga difusão. Nas colunas dos jornais e nas gavetas do seu escritório jazem centenas de crónicas e belos contos literários sobre as bravas gentes de Olhão, retratos das suas fraquezas e virtudes, das grandezas e misérias que fizeram de um porto de pescadores uma próspera vila industrial, a maioria dos quais compilou nos livros Contos de Olhão, 1989, 2.ª ed. 1997; e em O Meu Olhão, 1997. Os seus escritos constituem para as gerações actuais, uma útil fonte de referência para o estudo socioeconómico do concelho de Olhão.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A Capital do Sotavento


José Carlos Vilhena Mesquita

Nem sempre os nossos políticos produzem matéria editorial digna de apreço científico, ou pelo menos digna de interesse divulgativo, que permita explicitar publicamente os seus projectos, os seus vínculos ideológicos, os seus anseios e aspirações. Raros são, pois, os que pelo seu talento ou atributos intelectuais conseguem reunir ao longo da sua vida política um corpus documental, cuja ordenação lógica seja propiciadora do seu desvelamento político-socio-ideológico.
A compilação em livro das intervenções pronunciadas pelos políticos constitui uma destemida forma de exposição pública daqueles que nada temendo por muito terem para legar, pretendem naturalmente deixar às gerações vindouras o testemunho da sua competência técnica e idoneidade moral. Por isso, raros são os autarcas que por esse país fora se arrojam a publicar em livro os seus discursos, intervenções políticas, pareceres oficiais e projectos de fomento ou de estruturalização dos municípios a que presidem. Não é o caso do eng.º José Macário Correia, figura sobejamente conhecida do municipalismo algarvio, cujo denodado esforço permitiu que a cidade de Tavira figurasse no mapa nacional do progresso e do desenvolvimento, de uma forma sustentada, racional e quase científica. Nesse aspecto o seu exemplo tem sido paradigmático e merece, para além do nosso aplauso, a sugestão de vir a servir de modelo àqueles que, apenas visando a sua perpetuidade no poder, cuidam de agradar às chefias partidárias e seus confrades descurando o benefício das comunidades em que se inserem.
A publicação do livro Tavira – Capital do Sotavento, da autoria de Macário Correia, vê-se que não persegue objectivos promocionais ou eleiçoeiros, pois que se limita a compilar as suas intervenções públicas a favor da cidade que lhe serviu de berço. Aliás o eng.º Macário Correia é um político de nome feito, gravado nos anais do regime democrático, não com letras de ouro mas antes com letras de honra, de rigor, de sacrifício e de íntegra verticalidade. Não precisa, por conseguinte, de publicar livros para se afirmar no ingrato mundo da política. Já provou, nos anos que esteve no Parlamento, que é um homem de grande aplicação e esforço, quer no planeamento quer na execução de projectos estruturalizantes que beneficiem o país, não receando mesmo que a impopularidade de certas intervenções pudesse prejudicar-lhe a imagem ou menoscabar as ambições políticas. Por isso, não virou costas à contestação nem receou a erosão política, quando foi preciso dar a cara e proceder a reformas de reordenamento do território, de defesa do ambiente ou de pugnar pela saúde pública. A posteriori provou-se a sensatez e a racionalidade das suas decisões, ao mesmo tempo que cresciam as suas convicções regionalistas, a ponto de voltar à sua terra-natal para abraçar a presidência do município.
O livro agora editado vai seguramente tornar-se numa fonte de estudo para os analistas do nosso municipalismo, podendo com o decorrer do tempo vir a transformar-se num útil documento de trabalho para os investigadores de história local e regional. A obra reparte-se em cinco secções distintas, obedecendo à lógica descendente, ou seja, partindo do geral para o particular, ou melhor, da formalização da problemática para a individualização do problema, que aqui constitui, em estrito senso, a cidade de Tavira. Por isso, Macário Correia começa por analisar os grandes desafios do poder local, a filosofia municipalista enquanto descentralização e relacionamento interinstitucional, passando pela modernização administrativa, ordenamento do território, defesa do ambiente, tolerância político-partidária e cooperação internacional.
Na secção seguinte disserta sobre os grandes desafios que se antepõem ao Algarve no dealbar do novo milénio. A pedra de toque é a regionalização. Mas, como se sabe, o projecto foi rejeitado pelo voto popular, por se recear uma burocratização da província e um aumento da despesa pública, mercê da previsível distribuição de novos cargos políticos. A generalização das infra-estruturas básicas e a potencialização dos recursos naturais, a gestão do Plano Nacional da Água, a despoluição ambiental, a cooperação com a Andaluzia e o alargamento da União Europeia, são outros dos temas abordados e analisados nesta secção.
As três últimas partes do livro focalizam-se em Tavira, mormente na sua riqueza ambiental, na singularidade do seu património histórico, nas estratégias de desenvolvimento rural, na rentabilização e fomento das pescas, na renovação do equipamento social, desportivo e cultural, na política habitacional na ocupação dos tempos livres da juventude e no aparelho educativo - do qual sobressai o desiderato da criação de uma Universidade em Tavira.
Não há dúvida nenhuma que através deste livro ficamos a conhecer a obra política de Macário Correia, nos seus anseios, nas suas virtudes e até nas suas angústias, pois que nem todos os projectos se consumaram, mais por falta de apoios externos e vontade política do que por inépcia ou escassa aplicação do seu promotor. Por isso é que este livro é uma espécie de retrato da eficiência política e competência técnica do seu autor, que claramente se assume como um autarca da nova vaga (mais inspirado em princípios científicos do que em objectivos políticos), podendo a sua edição servir de proveito e exemplo aos seus congéneres algarvios.

CHAMINÉS do ALGARVE


Do artigo “As Chaminés Algarvias, da autoria de Mário Lyster Franco, publicado no «Correio do Sul», respigamos as seguintes passagens:

“O mais curioso ornamento da casa algarvia, a nota mais característica nas suas linhas banais, é a chaminé rendilhada e esbelta que quasi sempre a sobrepuja, pitoresco remate, em que o pedreiro da região dá largas à fantasia, procura ser criador, assinalar a sua passagem.
Torna-se por isso curioso observar as chaminés algarvias do alto de uma açoteia, vê-las espreitar pelo esquinado dos telhados, assomar por entre o verde intenso da vegetação, atalaias vigilantes, recorte sobressalente na casaria vista ao longe, torres de vigia de algum castelo cujas linhas gerais se confundem na distância. (...)
A chaminé é, no Algarve, o espelho, a alma da casa. Sempre alvejantes de cal, usufruem cuidados especiais, cuidados que o resto do edifício pode sempre dispensar.
E umas em feitio de torre de catedral, de chalé, de varandim ou de nora com telhas colocadas em arremedo de alcatruzes, outras em forma de relógio de mesa, em forma de palmatória, de borla de catedrático ou de barrete de clérigo e muitas, o maior número, conservando uma linha esbelta e graciosa dos minaretes, formas que se diriam copiadas da Giralda de Sevilha, tudo afinal reminiscências da mesma origem comum.
Porque há, certamente, qualquer coisa de ancestral nesta forma bizarra de construir as chaminés, neste amor que se lhes consagra, nestes cuidados excepcionais. É a saudade de um passado que tudo se compraz em recordar a toda a hora, ou como mais explicitamente afirmou um escritor distinto «a saudade do minarete a palpitar timidamente, no rebuço cristão da chaminé.”

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Arraial dos Pescadores de Tavira


O “arraial” da armação “Medo das Cascas” construído no Sapal do Rato, em Tavira, pela Companhia de Pescarias do Algarve, para albergar o seu pessoal e apetrechos de pesca, foi inaugurado no dia 15-4-1945. Delineada e concebida pelo Engenheiro Sena Lino, a obra foi executada pela firma Eduardo Martins Zeromenho & Rosa limitada de Faro.
Tratou-se de uma obra social de grande importância para a classe piscatória, já que nela se edificaram, além dos armazéns próprios para a pesca, alguns blocos de casas de habitação para os pobres pescadores, uma escola, uma igreja e um posto médico.
Posteriormente este complexo sócio-industrial tomou a designação de “arraial Ferreira Neto”, sendo actualmente transformado num complexo turístico designado por Hotel Albacora.

O luto por Salazar no diploma de Sócrates


José Carlos Vilhena Mesquita

Nos idos de Março agitou-se a pátria e alarmou-se a nação com um mediático concurso que tinha por objectivo destrinçar, desde os alvores da nacionalidade até aos improfícuos dias de hoje, as dez personalidades que mais dignificaram o nome de Portugal.
A ideia, do ponto de vista televisivo, foi bem aproveitada em variadíssimos países. Porém, surgiu ao arrepio dos ventos da modernidade e, pior ainda, no inverso da actual agenda europeia. Na verdade, o que se discute hoje nos areópagos políticos da União Europeia, são os malefícios e as inconsequências das nacionalidades, das coesões pátrias e das independências territoriais. Factores esses que, no conceito dos émulos do eurocentrismo, servem apenas para espartilhar e enfraquecer a consistência política e a solidez económica do velho continente.
Ora, todos sabemos que, decorrido meio século após a assinatura do Tratado de Roma, se assiste hoje ao estertor das velhas pátrias – que à imagem de Portugal têm atrás de si vários séculos de História. Por isso, não parece acertado, nem conveniente, vir agora ressuscitar a memória daqueles que se imolaram nos altares da glória para salvarem a Europa da barbárie tribal e do obscurantismo panteísta. O que interessa hoje é apagar da lembrança o individualismo patriótico, para dar destaque ao colectivismo económico, procurando por todos os meios esbater as diversidades culturais por forma a poder construir-se uma História comum, dentro de uma só unidade territorial, capaz de formar um único complexo histórico-geográfico: a Europa. Os países do centro fundir-se-ão num único Estado, com um só governo e um só parlamento, florescendo e prosperando até que os mais renitentes membros da periferia se lhes unam para usufruir dos benefícios económicos daí resultantes, engendrados pelo forte industrialismo alemão e pelo capitalismo financeiro emergente. A velha Europa das nações está hoje moribunda e com o funeral já anunciado. O futuro próximo é o da fusão das pátrias e das nações numa só unidade política, geográfica, económica e cultural. Confesso que como português, não gostaria de assistir ainda em vida ao fim do meu país e da minha pátria. E como historiador só peço a Deus que o futuro nos não reserve uma guerra de extermínio entre o anunciado imperialismo europeu e o actual imperialismo americano, cada vez mais forte económica e militarmente.
Perante a realidade actual e os previsíveis cenários do futuro, parece totalmente incongruente que alguns países europeus se tivessem lembrado de engendrar um concurso sobre os “Pais da Pátria”. Talvez não seja assim tão despiciendo como se possa pensar. Os políticos europeus precisavam de apurar se as gerações actuais ainda reverenciavam os velhos heróis, primaciais ou fundamentalistas, o que não aconteceu. Na França venceu Charles de Gaulle, no Reino Unido foi Winston Churchill e nos EUA foi Ronald Reagan. Todos lideres políticos, democraticamente eleitos e de forte carisma, o que não significa nada porque também Hitler e Mussolini foram eleitos por sufrágio legal e maioritário. Os resultados práticos demonstraram que a memória é curta e que só o séc. XX parece interessar aos cidadãos, sobretudo aos mais instruídos e aos mais jovens. Como os participantes foram maioritariamente do tipo info-eleitor, isto é, votaram maciçamente através da Internet e do telemóvel, pressupõe-se que seriam oriundos das gerações mais jovens, mais instruídas e com maior desafogo económico.
Nas derradeiras semanas que precederam o desfecho final, assistiu-se a uma premente e apressada tentativa para acicatar o entorpecido sentimento patriótico e o afrouxado nacionalismo do povo português, no sentido de se encontrar uma credível alternativa a Oliveira Salazar – previsível e temivelmente apontado como hipotético vencedor de um certame tão patético quanto inoportuno. A vitória tornou-se ainda mais premente quando se soube que na peugada do ditador seguia Álvaro Cunhal, santificado ícone do PCP e fanal do comunismo ortodoxo. A nação lusíada uniu-se em torno do “fascismo de sacristia”, talvez por considerar que os Pides salazarentos não passavam de meninos de coro quando comparados com os torcionários agentes do temível KGB. A lógica parece ter sido a do mal menor.
Por outro lado, a votação em Salazar pode ter sido influenciada pela política de Sócrates, que é, nos últimos trinta anos, a mais parecida com a do velho ditador, imitando-o no combate ao défice das finanças públicas através duma estratégia de contenção económica, diminuindo nos custos fixos e desinvestindo no sector público. Tal como o antigo “mago das finanças” – essa abantesma que do túmulo de Santa Comba parece ter-se reerguido para amaldiçoar o país – também Sócrates lançou um feroz ataque aos sectores da Educação e da Saúde, encerrando escolas, maternidades, centros de saúde, e outros serviços públicos, considerados improfícuos ou demasiado onerosos para o equilíbrio das finanças orçamentais. O governo lançou o acostumado labéu da excedentarização e da improdutividade contra os professores, acusando-os de ganharem salários altos, de ensinarem mal e de trabalharem pouco. Salazar usou das mesmas atoardas para convencer os pacóvios. Fechou escolas primárias, reduziu os quadros hospitalares, encerrou tribunais e despediu em massa os funcionários que pertenciam aos antigos partidos republicanos. É claro que nessa altura, Salazar herdara um país na bancarrota e próximo do caos, assolado por greves constantes, carestia de vida, desordem e violência na rua, enfim um quadro socioeconómico da mais profunda instabilidade. Por isso a ditadura foi tolerada como um mal menor, talvez na errónea expectativa da sua transitoriedade.
Mas se as diferenças entre Salazar e Sócrates são abissais, há, porém, uma coisa que importa dizer: é que Salazar, embora ditador, morreu pobre; enquanto que Sócrates estou certo que nunca será ditador, nem morrerá pobre. Salazar era licenciado e doutor, graus que Sócrates talvez nunca venha a obter... pelo menos de forma inequívoca.
Para terminar, resta-me acrescentar que já percebi a origem de toda esta sanha de Sócrates contra os professores. Tudo ficou, aliás, plenamente explicado nos últimos dias, através do polémico encerramento da Universidade Independente. Num pélago de dúvidas e de incertezas, flutuam nas alterosas vagas do oportunismo político, vários documentos difíceis de destrinçar na sua honorabilidade.
Afinal tudo se resume a uma questão de diplomas... uns têm, outros parece que não...

PS. Este artigo foi publicado na revista «Algarve Mais» em 2007.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

UMA NOITE COM O FOGO em MONCHIQUE


José Carlos Vilhena Mesquita
Confesso que é sempre um prazer falar da obra do escritor António Manuel Venda, um dos mais jovens e promissores escritores da nova vaga literária, que tem emprestado às letras nacionais o brilho do seu talento e da sua ilustração intelectual. Devo acrescentar que o que mais me impressiona na sua forma de ser e de estar, assim como na sua personalidade de escritor, é a sua intrínseca e natural simplicidade, o seu espírito humilde e discreto, assim como a feição despretensiosa como encara o sucesso da sua obra e da sua relevante posição no contexto da moderna literatura portuguesa. Esses são apenas aspectos pessoais e muito particulares do homem/autor, que se reflectem e evidenciam na sua escrita e no seu próprio processo de criação narrativa, sendo, em minha opinião, de uma desconcertante simplicidade na forma como escolhe as palavras mais comuns para construir um texto muito difícil de elaborar, mas fácil de entender. Esta simbiose da facilidade da escrita e da compreensão do discurso narrativo, faz com que a sua obra literária se torne muito acessível e de apetecível leitura, sobretudo para o público jovem.
Este livro, Uma Noite com o Fogo, que tivemos a honra de apresentar oficialmente em Faro, na livraria «O Pátio das Letras», está integralmente redigido num discurso indirecto livre, que, no caso presente, constitui um recurso literário, ou uma estratégia de construção estilística, muito difícil de conceber e até mesmo muito raro de se ver no actual panorama da nossa literatura. Em todo o caso, o autor faz uso constante das exclamações, das interrogações, das reticências e dos localizadores temporais e espaciais que denunciam a presença do eu, aliás sempre recorrente e quase omnipresente na construção diegética da obra. Este recurso ao eu, denuncia claramente a existência duma trindade diegética, consubstanciada na simultaneidade do autor, do narrador e da personagem principal numa só figura – o eu. E na construção desse eu, surgem como aglutinadores do discurso indirecto os verbos declarativos, sendo que os processos de subordinação desaparecem neste modo discursivo, fundindo-se a voz do narrador com a personagem principal, como se falassem ambas em simultâneo. Mas, no fundo, o que torna este livro numa obra de singular relevância é a sua formulação narrativa, assente numa consistente estrutura sintáctica e numa bem concebida elaboração frásica, em cujo âmago sobressai a sua construção semiótica, atribuindo um forte pendor simbólico aos pequenos enfoques em que decorre a acção diegética. Por outro lado, todo o livro é trespassado por constantes retrocessos no processo narrativo, entre o passado da meninice do narrador/personagem, pleno de bucolismo e ingenuidade, em contraste com o tempo presente, cujo ambiente social e envolvência natural se foi desgastando e adulterando no assoberbante vórtice materialista da vida moderna.

Uma obra independente

Dificilmente se pode classificar esta obra do ponto de vista estético. Não segue correntes nem estilos predefinidos. Ao contrário das obras anteriores, António Manuel Venda distancia-se nesta Noite com o Fogo da estética neo-realista, tão do seu gosto literário, para fazer uma breve incursão pelo romance experimental da nova vaga anglo-saxónica. Daí que seja difícil de definir ou de enquadrar esta obra numa corrente estética reconhecida, pelo que a melhor maneira de a classificar será precisamente considerá-la como obra independente, livre e sem alinhados clichés estéticos, fugindo assim aos modelos literários e a outros figurinos academicamente estabelecidos.
Acima de tudo este livro é uma obra de arte, esboçada numa pintura de emoções e de sobressaltos, na qual sobressai avassaladora a luz do fogo, entrecortada pela tisne penumbra dos fumos e das cinzas que cobrem de horrendo negrume a noite de todos os desafios e de todos os desencantos. Neste quadro já não se vislumbra a outrora verdejante paisagem da serra algarvia, mas vê-se em traço impressionista a exasperada e indignada luta do autor contra um cenário de catástrofe, que se torna insuperável devido à falta de concertação de meios e de união de esforços para compor com outras tintas um panorama cenatório de heróicos sucessos humanos. O que inflama este livro é precisamente a centelha de génio do António Manuel Venda, cuja indefinida corrente estética faz transparecer um estilo muito peculiar, estruturalmente descritivo com movimentações bruscas e muito imprevisíveis, mas intrinsecamente pictórico, numa espécie de naturalismo pós-milenarista, transfigurando a placidez dos seres e dos espaços naturais em fantásticas mutações oníricas, sem serem terrificamente intranquilas ou pavorosas. Bem pelo contrário, a sua criatividade literária revela-se numa acentuada imaginação estética, muito forte e diversificada em subterfúgios cinéfilos e em fobias de íntimo psicologismo.
No meu conceito, A.M.V. é um escritor da dialéctica espiritual, em toda a plenitude desse aparente contra-senso, cuja obra Uma Noite com o Fogo é sumamente difícil de qualificar, pois que não sendo um livro de contos, de crónicas nem de ensaios, também não é uma novela nem um romance, na verdadeira acepção teórica desse género literário. Por necessidade de funcionalidade analítica, digamos que se trata de uma crónica-romanceada, na qual o texto descritivo supera claramente o narrativo, obliterando o uso de personagens, suprimindo as localizações físicas, omitindo as referências cronológicas e preterindo os conflitos socioeconómicos para construir um romance, que não sendo de intervenção é, acima de tudo, uma obra de arte.
Não existe neste livro um único diálogo, um único momento em que o autor recorra ao discurso directo, talvez porque também nele não existam personagens, nem mesmo pessoas identificadas com nomes próprios. Nada neste livro está identificado, nem no tempo nem no espaço, certamente para que o leitor não se distraia nem se afaste do cento fulcralizador da narrativa – o fogo na floresta. Muito embora não se identifique o lugar onde decorre a acção diegética, deduz-se não só pelas origens do autor como ainda pelos constantes feedbacks autobiográficos, que se trata da serra de Monchique. Percebe-se que é nas terras do seu berço, porque no início do livro o autor-narrador-personagem dirige-se no seu automóvel a grande velocidade para sul, deixando para trás o Alentejo, correndo na direcção dos montes da sua infância, sugestionado pelas dramáticas imagens da floresta em chamas que pouco antes haviam sido difundidas pela televisão.
Tudo o que se vê e sente neste livro é a percepção da dramática falta de meios, e da natural insuficiência humana, na luta contra o fogo. São as chamas diabolicamente a lavrar na serra, como se fossem um indestrutível e incontrolável monstro, a cuja avassaladora força e impiedosa devastação se submetem a exuberante, mas indefesa, natureza e as populações locais, cujos bens e, por vezes, até as próprias vidas, se perdem numa luta titânica contra a força dos elementos, que nem o engenho nem a bravura humana conseguem superar.
O fogo assume neste livro um enquadramento preponderante, no espaço cenático e na construção diegético, desenvolvendo-se por vezes ao nível duma personagem que se transfigura entre uma luminosa referência no horizonte e uma dócil linha de fogo, que rasteja aos pés do narrador, para logo se transmutar num mar de alterosas labaredas, que tudo devora e devasta numa impiedosa onda de cinzas e calcinados destroços. O fogo é como que a personagem superestrutural desta obra. É nele que se materializa a violência, o desastre, a morte e a devastação, numa concentração activa contra a própria Natureza, o Ambiente e a Floresta, numa espécie de trindade dos elementos, que em Monchique dá o cerne e a vida àquele povo e àquele território. O espectro do fogo e da incineração da serra de Monchique tem sido ao longo de séculos uma ameaça constante, um traiçoeiro inimigo, um monstro terrífico e catastrófico que tudo reduz a cinzas, transformando a beleza natural dos ricos montados de sobro, das florestas de pinheiros e de castanheiros, em horrendos campos de escombros e cinzas.
Desde há séculos que a riqueza do povo monchiquense se tem estribado na produção agro-pecuária e numa prolífera indústria florestal, mercê de um microclima favorável à silvicultura. Por isso não admira que o tema principal deste livro tivesse incidido precisamente na dramática descrição do devastador incêndio ali ocorrido (neste caso em 2004), que durante dias lavrou impiedosamente por toda a serra, reduzindo a cinzas uma vasta concentração florestal formada por diversas espécies arbóreas, algumas delas únicas e insubstituíveis, cujo repovoamento e substituição ocupará várias décadas e algumas gerações até que definitivamente se volte a reconstituir na sua plenitude.

As personagens intradiegéticas

Neste livro as personagens são figuras literárias, embora não sejam pessoas nem propriamente personagens narrativas, mas antes espaços, contornos, delineamentos de cenas dramáticas, sem sangue nem violência humana, mas antes com o dramatismo da destruição plena e irreversível do fogo na floresta, o que dá às figuras do romance uma personalização muito especial e muito activa naquilo a que podemos designar por “cenas de fulgor”, isto é, os momentos em que a narrativa chama o leitor para o centro da acção diegética, fazendo-o sentir a experiência e a dramatização do quadro literário.
Dado que as personagens deste romance adquirem pouca expressividade literária, até porque se confundem com a triangulação do autor-narrador-personagem, pois que lhe são próximas das suas memórias de infância, ou que lhe são íntimas como é o caso dos seus familiares, percebe-se que são personagens de opaca identidade ou de esbatida descrição física e de sofrível afirmação psicológica. Podemos mesmo afirmar que neste livro as personagens não são proeminentes nem afirmativas, permanentes ou insistentes, sendo simplesmente meros suportes da narrativa, quase figurantes secundários, uma espécie de dramatis personae num palco desprovido de um multiforme enquadramento cenático. Por outro lado, o tempo da acção diegética é também triangular e pluridimensionado entre o passado e o presente e – aqui é que está a diferença – a inexistência do futuro, aliás impossibilitado pela devastação do fogo.
É curioso que neste livro o tempo diegético constitui uma espécie de fusão das diferentes dimensões do próprio tempo, que se espraia, se confunde e se mescla numa sucessão interactiva entre tempo biológico, tempo psicológico, tempo histórico e tempo ontológico. O poliedro construído no cerne da narrativa entre o tempo, a sua duração e sucessão, põe, por vezes em dúvida ou em confusão, as noções de início e de fim, de presente e de passado, esbatendo-se as suas naturais coordenadas de espaço e de referencial, dando azo a que a narrativa assuma uma certa autonomização de linguagem, não só para a concepção do espaço recente, ausente e irreal, como ainda para a sua distanciação tridimensional entre o passado, o presente e o narrador-personagem. Isso vê-se ou constata-se em momentos fulcrais da narrativa, quando a imaginação do narrador resvala para o fantástico, confundindo a realidade com a fantasia, construindo um diálogo surdo mas visivelmente sensorial entre personagens reais e irreais, numa dinâmica multifronte e inapreensível.
Salta à mente do leitor a necessidade de reflectir, como participante intradiegético, num processo de autognose individual e intimista sobre o devir do homem, sobre o ambiente que o rodeia e sobre a preservação do património natural, que não lhe pertence, mas que é um legado a ser integralmente transmitido às gerações vindouras.
Para terminar devo acrescentar que esta obra não se integra no Realismo Urbano dos seus romances anteriores, mas antes numa espécie de Naturalismo Burguês Telúrico, pois que a narrativa é concebida pelo autor-personagem António Manuel Venda, que se ausentou do espaço natural que lhe foi berço para o centro urbano e burguês, onde fez a sua formação intelectual e a sua adaptação ao espírito materialista dominante, no qual se adapta mas que repudia em face das referências naturalistas, sinceras, desinteressadas e solidárias, onde fez a sua socialização primacial.
O autor-narrador-personagem, regressa neste livro ao espaço natural das suas origens, que descreve, aliás, como sendo o espaço da interacção moral entre o sacrifício do trabalho árduo, a coragem solidária, a honradez social, a ética espiritual e fraterna, contra o egoísmo do materialismo insensível e desumanizante. O cerne principal desta obra é o ambiente natural da serra de Monchique, em toda a sua plenitude, sendo por demais evidente que o António Manuel Venda faz a descrição da envolvente biodiversidade da fauna e da flora, como alguém que conhece ao pormenor os diferentes elementos naturalistas, enumerando distintas espécies arbóreas, como amieiros, sobreiros, azinheiras, alfarrobeiras, medronheiros, castanheiros e pinheiros, em cujo ambiente é sempre possível que o leitor seja confrontado com episódios de imaginosa fantasia, entre o pícaro e o trágico, como a descrição de perigosas alclaras, fugidios texugos e javalis, moribundos escalavardos, misturados com o espectro fastasmagórico de um “Rasputine a preto e branco”, que presumo venha a ser aproveitado para um próximo romance, à imagem do “mágico-velhinho” de livros anteriores.

[texto de apresentação do livro Uma Noite com o Fogo, de António Manuel Venda, edição da Quetzal Editora, apresentado em 24-04-2009, na livraria Pátio das Letras, em Faro]

terça-feira, 10 de novembro de 2009

A VIAGEM da PARKER 51

José Carlos Vilhena Mesquita

A literatura infantil tem experimentado ultimamente no nosso país grande desenvolvimento, a ponto de haver conquistado um espaço de verdadeiro sucesso no sector comercial livreiro, o que a todos tem agradavelmente surpreendido. Não há hoje nenhum adolescente, minimamente instruído, que não tenha lido as pedagógicas páginas literárias de um qualquer livro assinado por Matilde Rosa Araújo, Alice Vieira, Isabel Alçada ou Ana Maria Magalhães. Aliás estas duas últimas escritoras são em larga medida responsáveis pela evidente propulsão da literatura infanto-juvenil, a ponto de haverem criado colecções temáticas que os miúdos compram e lêem numa espécie de cadeia sequencial, o que tem contribuído para a boa formação moral e cultural das camadas jovens.
Diga-se de passagem que este género literário sofreu um grande impulso no início da década de oitenta, quando a reforma curricular do ensino básico e os novos projectos de implementação didáctica, fundamentados em inovadoras estratégicas pedagógicas, passaram a fazer parte da formação científica dos professores e da formação cívica dos alunos. A sensibilização dos professores para a nova literatura infantil, que se produzia no país e no estrangeiro, foi decisiva para o desabrochar de um género literário que até aí parecia adormecido.
Com efeito, quando no século XIX se começou a falar de pedagogia e João de Deus surgiu com a sua Cartilha, assistiu-se, precisamente com o poeta do Campo de Flores, ao aparecimento dos primeiros indícios de uma nova corrente literária. Antero de Quental apareceu logo a seguir com um insípido Tesouro Poético da Infância, em cujo género surgiria mais tarde Afonso Lopes Vieira com o Bartolomeu Marinheiro e sobretudo com os Animais Nossos Amigos, que fizeram as delícias de sucessivas gerações, nas quais me incluo. Era a República, então emergente, a dar os primeiros passos na formação pedagógica estudantil, através de uma certa exaltação dos valores patrióticos e das virtudes lusitanas, ressuscitando heróis e mitos do passado histórico.
Daí por diante assistiu-se a uma certa aceleração da literatura infantil pela mão de notáveis escritoras, envolvidas nas "guerras" sufragista e emancipalista das mulheres. Cito de memória a Ana de Castro Osório, com o livro de contos Para as Crianças, Virgínia de Castro e Almeida de que me lembro da História da Dona Redonda e da sua Gente, Maria Sofia de Santo Tirso (apadrinhada por Maria Amália Vaz de Carvalho) com a Boneca Cor de Rosa e outros livros de que não me recordo, mas que me lembro de ser visita esporádica na casa de meus pais. Seria, porém, injusto não deixar de referenciar outros nomes sonantes da literatura infantil como, por exemplo, Maria Archer (que viveu em Faro), António Boto que escreveu em prosa O Livro das Crianças, Emília de Sousa Costa com o Tagaté às do Futebol, Fernanda de Castro com as Aventuras da Mariazinha, Raul Brandão com o Portugal Pequenino, António Sérgio com Na Terra e no Mar, Aquilino Ribeiro de quem recebi em mão a oferta do Romance da Raposa e da Arca de Noé, Adolfo Simões Müller com as Aventuras do Trinca Fortes que era uma biografia de Camões, o Padre Moreira das Neves e António Manuel Couto Viana, de que fui amigo de ambos, escrevendo peças de teatro infantil que representávamos nas escolas, e tantos outros que a memória agora atraiçoa. Não posso passar adiante sem lembrar o Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos de Alves Redol e as Aventuras Maravilhosas de João Sem Medo de José Gomes Ferreira, que foram escritores que marcaram a minha juventude e a minha formação intelectual.
No caso da literatura algarvia não há muitos e bons exemplos para aqui trazer à colação. Apenas destaco os livros Leonel Neves dedicados à literatura infanto-juvenil, como por exemplo Histórias do Zé Palão, O Polícia Bailarino, João Careca Mestre Detective e outros, infelizmente pouco conhecidos e mal divulgados, a necessitar de uma compilação em livro para oferecer às escolas, pelo menos as do Algarve. Mais recentemente duas escritoras algarvias, Maria Teresa Ramos com O Senhor Ambiente, e Maria Armanda Tavares Belo, com A Cebolinha Perdida e Outras Histórias, deram à literatura infantil um pequeno mas significativo contributo que merece ser aqui louvado.
A juntar aos autores citados cumpre agora destacar a obra de Idália Farinho Custódio, uma escritora natural de Loulé, que considero de incontestável talento e uma verdadeira mais-valia no actual panorama da literatura algarvia. A sua paixão pela literatura infantil advém certamente da sua formação profissional, pois como professora sentiu-se atraída para novas vias de motivação pedagógica de entre as quais a escrita é, certamente, a mais efectiva e proficiente. Começou há duas décadas atrás a publicar poesia para crianças, dando à estampa o livro Carrocel Superstar (1980) a que mais tarde daria seguimento com O Menino que era Poeta (1989). Dedicou-se também ao conto infantil publicando mais quatro livros: O Rouxinol e a Rosa (1981), A Viagem da Parker 51 (1985), O Segredo da Rainha (1991) e As Mãos do Meu Irmão (1997).
A utilidade e valor da obra de Idália Farinho no âmbito da formação ético-cultural das crianças não merece contestação. Muito pelo contrário, é de insofismável interesse pedagógico e a merecer todo o apoio das entidades oficiais, mormente da Direcção Regional de Educação do Algarve. Digo isto porque outros autores existem dedicados à literatura infantil no Algarve e por esse país fora, mas raras são as editoras sediadas na capital que apostam nos autores de província. E quem não publica com a chancela da Editorial Caminho, da Editorial Notícias, das Edições Asa ou da Porto Editora, não só não ganha os direitos autorais como também nunca sairá do anonimato, porque em volta dessas editoras existe um apoio mediático que facilita a divulgação das obras e a credibilização literária dos respectivos autores.
Não devendo vassalagem a ninguém a Dr.ª Idália Farinho Custódio pode contar com a colaboração da AJEA para levar por diante a reedição desta Viagem da Parker 51 que merece, em primeiro lugar, uma nota bastante positiva pela sua apresentação gráfica, mercê dos belíssimos desenhos de José Maria Oliveira que valorizam artisticamente toda a obra. Em segundo lugar, merece também nota positiva a forma incisiva como a autora desenvolveu a sua narrativa, que sendo para crianças impõe-se que seja breve, alegre e empolgante, cativando a atenção dos miúdos e enchendo as páginas com pouco texto para que estes as conquistem até ao último folgo, como quem vence a batalha da leitura.
Num livro de sessenta páginas é preciso pensar também na paciência e no esforço intelectual das crianças, que devem ver no livro um objecto de distracção e na leitura uma acção de prazer. É claro que para nós, mais velhos, o livro é uma fonte de conhecimentos, mas para as crianças é quase sempre uma prova de paciência e de esforço intelectual, porque exige que a leitura seja acompanhada do recurso à abstratização de imagens e à associação de ideias, tornando-se para isso imprescindível a concatenação dos conhecimentos adquiridos anteriormente. Por essa razão é que os livros infantis devem ter um público-alvo muito bem definido, segundo o escalão etário e a sua competente formação escolar. Atenta certamente a todos esses factores a autora construiu uma narrativa muito viva, carregada de peripécias, surpresas e imprevistos, numa sucessão de quadros ao jeito duma peça teatral, usando um vocabulário acessível mas rigoroso, quer na construção semântica quer na elaboração sintáctica das frases e sobretudo dos diálogos, que não sendo curtos são, porém, completos.
A ideia base que nos parece subjacente a este livro incide nos valores da amizade, da confiança, do respeito mútuo e, fundamentalmente, do amor. O personagem principal é a Caneta - como objecto indutor da escrita - que realiza uma viagem propiciadora de novos conhecimentos, de novos relacionamentos e de trocas culturais, que resultam no sucesso e na felicidade da protagonista. A frase lapidar ou mensagem global do livro – que a autora pretende fazer passar como “moral da história” – é tão sugestiva quanto apelativa: «Não deixes morrer a palavra AMOR! Ela tem que ser a Estrela Universal.» E, de facto, não haverá maior bandeira no ideário dum hipotético humanismo universal do que o Amor.
Na verdade, estamos perante uma fábula dos tempos modernos, pois que a Caneta assume um papel humanizado, nos seus defeitos e virtudes, que se deixa seduzir pelo mistério duma viagem a Nova Iorque, ao longo da qual se confronta com as fraquezas que nos são peculiares, como a inveja, o desprezo, a indiferença, o racismo, o egoísmo e a ambição. É curioso que nesta história a Caneta também tinha a sua presenção e vaidade, ao ser apontada como uma Parker - que é sinónimo de sucesso e prestígio - cuja risca dourada lhe dava um toque de classe e distinção. Em todo o caso assume a sua humildade de emigrante num país de oportunidades, onde por fim alcança o almejado sucesso numa companhia de circo, mercê da sua inteligência e dos seus dotes de escrita.
O surrealismo desta fábula, que é um misto de materialismo e espiritualidade, envolve o livro numa aura de simpatia e felicidade, que induz o leitor a penetrar num mundo de fantasia que lhe é querido e, nas idades mais jovens, muito peculiar. Vê-se que a autora estudou claramente os pontos de maior sensibilidade na narrativa para prender a atenção dos seus jovens leitores. E conseguiu-o até com os mais velhos, que nesta «Viagem» gostariam certamente de estar no papel da Parker 51. Para eles “os menos jovens” existe um certo saudosismo nesta caneta, pois recordo-me perfeitamente de possuir nos idos de sessenta uma Parker azul com um anel dourado, que emprestava aos seus possuidores um toque de requinte e um brilho de distinção, um pouco à imagem da protagonista desta bela história infantil.
Sugestivo é também o facto desta Caneta, no seu lusitanismo anglófilo, se ter cruzado com os nossos emigrantes na América, onde foi bem recebida e tratada com admiração, por força da sua mestria na arte da escrita. Tornou-se pois numa estrela de circo - aqui simbolicamente representado como fonte primordial do nosso imaginário infantil - devido à sua capacidade para escrever as palavras que o público lhe ditava. Curiosamente recusou-se a escrever a palavra «Guerra», por ser a mais maldita, a mais trágica e detestável do vocabulário humano, mas recebeu do público um estrondoso aplauso quando escreveu com luminosas cores a palavra «Amor».
O livro encerra com uma mensagem de fraternidade e amor, num amplexo que deve unir toda a humanidade, quaisquer que sejam as suas coordenadas geográficas ou as suas diferenças étnicas, culturais e religiosas. É por isso um livro recomendável para a educação e formação moral dos nossos filhos. Essa é também uma das razões pela qual a AJEA se orgulha de ter dado à estampa mais uma obra de sucesso, cuja autora, sendo louletana e algarvia de gema, merece todo o nosso apoio.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O aborto, uma questão civilizacional


José Carlos Vilhena Mesquita

No mês passado, era meu propósito escrever sobre aquilo a que chamo a questão civilizacional do aborto. Se não me expressei em devido tempo, isto é, antes do referendo, foi porque entendi que como professor não o devia fazer. Seria eticamente reprovável. Contive-me, por isso, no silêncio da responsabilidade, evitando abordar o assunto, até mesmo na privacidade do lar. Um tema de tão melindrosa e susceptível análise ético-religiosa exigia uma profunda reflexão, íntima, ajuizada e prudente.
Na verdade, nunca expressei publicamente a minha opinião sobre o aborto porque um professor, seja qual for o grau de ensino em que exerce o seu múnus profissional, é sempre uma referência, um modelo, um exemplo a imitar. Não só para os seus alunos, como até para a sociedade em geral, já que desde os alicerces da civilização clássica se confiou ao “pedagogo” a prestigiosa função social de educar os jovens no salutar espírito da defesa da verdade, da honra e da pátria. Foram esses, aliás, os supremos valores que embasaram as grandes civilizações e insuflaram a ética social no mundo ocidental. Com a Revolução Francesa e a consequente formação do estado moderno, aos valores sociais e direitos cívicos acrescentaram-se os deveres e as responsabilidades colectivas da administração pública, as quais são basilarmente quatro: educação, trabalho, saúde e habitação. Estes foram, e continuam a ser, os vectores sociopolíticos de cuja convergência resulta a plena consecução da Liberdade e da Cidadania.
Analisando esses vectores tradicionais, verificamos o quanto estão hoje pervertidos em nome da lógica economicista que tutela os destinos do Estado.
A educação atravessa uma crise de eficácia e de abaixamento de qualidade, porque o governo elegeu os professores como inimigos públicos, vilipendiando-os aos olhos da sociedade e diminuindo-lhes a autoridade profissional. Quando um país desprestigia socialmente os seus professores, é certo e sabido que o seu futuro está irreversivelmente hipotecado à ignorância, à insolência, à desfaçatez e ao desprezo pelos valores da ética social. A educação neste país corre a passos largos na direcção da sarjeta.
O trabalho, como um direito social – sobretudo como pedra angular da dignidade familiar, fonte de honra e orgulho para o trabalhador – está cada vez mais longe da esfera de protecção e fomento do Estado. Aliás tem-se assistido à forma vergonhosa como o governo tem combatido os moldes do antigo contrato social, tentando imitar os paradigmas nórdicos, absolutamente antinómicos com a nossa mentalidade latina. Para não arcar com as custas de protecção ao trabalhador, o governo tem procurado legislar a favor da precariedade do emprego, entregando nas mãos dum patronato sujeito à lógica do lucro, o destino de milhares de famílias.
A saúde, até aqui moldada num paradigma de protecção nacional aos cidadãos mais desfavorecidos, tem sido sistematicamente trucidada pela lógica economicista da actual administração pública. Faltam médicos, sobretudo na periferia, encerram-se maternidades, desumanizam-se os hospitais-centrais que passam a ser geridos como empresas, transformam-se os antigos hospitais das vilas e cidades de província em inconsequentes centros de saúde, onde a aspirina é remédio santo para todos os males. O pobre vai para o centro de saúde, o remediado para o hospital e o rico para a clínica privada. A saúde, tal como o país, não funciona nem beneficia os mais carenciados, porque o sector está submetido a uma teia de influências suscitadas pelas Ordens (dos médicos e dos farmacêuticos), cujos interesses corporativos se sobrepõem aos do próprio Estado.
A habitação, como obrigação social do Estado, tem vindo a perder o fulgor a que nos habituara em décadas anteriores. Apenas nas autarquias se assiste à construção de bairros sociais, ao apoio logístico das cooperativas habitacionais e, por vezes, à subsidiarização de projectos com relevância local. Ao contrário disso, o Estado acabou com os apoios ao “crédito jovem” e ao “juro bonificado” para os casais de baixos rendimentos que desejassem adquirir casa própria. Por outro lado, reduziu para metade os apoios ao “arrendamento jovem”, de que muito beneficiavam alguns estudantes pobres deslocados para as diversas universidades do país.
Neste caso, importa referir que a habitação é acima de tudo um negócio, que faz parte de um próspero sector económico, o da construção civil, que movimenta anualmente biliões de euros. Tem sido, aliás, um dos principais factores de enriquecimento da banca. Creio, muito particularmente, que o sector da construção, com toda a sua envolvência empresarial, adquiriu já o estatuto de Capitalismo Imobiliário, com uma abrangência universal muito semelhante (senão mesmo superior), ao dos tradicionais capitalismos: agrário, comercial, industrial e bancário ou financeiro. Mas isso são contas de um outro rosário, que não interessa trazer aqui à colação.
Acontece, como já todos nos apercebemos, que o mundo actual está em total remodelação. O paradigma político alterou-se profundamente. O Estado-social, paternalista e protector, está moribundo. Acabou a Guerra-Fria. Morreu o socialismo. Instalou-se a globalização.
Hoje tudo se perverteu. Os sindicatos perderam força junto dos quadros médios, e os próprios operários deixaram de confiar nos dirigentes laborais. Por outro lado, os partidos desacreditaram-se nos seus jogos de poder, nos interesses privados dos seus líderes, e nas teias da corrupção suscitados pelos grandes grupos económicos, cada vez mais internacionalistas e apátridas. Os chamados “grupos de pressão” deixaram de ser político-sociais, passando a ser exclusivamente económicos. E o Estado português tornou-se numa presa fácil da Banca e dos grandes grupos económicos, cujos lucros anuais são verdadeiramente escandalosos e imorais. Os políticos pactuam com os indecorosos lucros da Banca, porque sabem que quando saírem do governo terão à sua espera pingues empregos, para exercerem a perniciosa traficância de influências junto dos diversos poderes político-administrativos.
Por tudo isto, avizinha-se um novo contrato social, cada menos humanista e cada vez mais imoral. E nesse âmbito se inscreve a questão nacional do aborto, que, na lógica dos comportamentos globais, não podia ter outro resultado senão aquele que legitimamente os portugueses escolheram.
Face à crescente desresponsabilização do Estado na protecção da família, a opção favorável à Interrupção Voluntária da Gravidez, vulgo aborto, era a mais viável e a mais necessária aos interesses estabelecidos.
Um Estado, ou melhor, um governo, que não incentiva o crescimento das famílias porque não ampara as mães na flexibilidade das suas responsabilidades laborais, nem as apoias financeiramente no sustento e educação dos seus filhos, não pode deixar de incitar as mulheres ao aborto.
Bem sei que o aborto é imoral. Mas também sei que o estigma que impende sobre a consciência moral das mulheres deve ser tormentoso. Todavia, a prática do aborto é hoje, e cada vez mais, uma realidade incontornável. A alternativa é a clandestinidade, nas mãos abjectas duma abortadeira, raramente integrada num quadro clínico seguro, sendo em qualquer das circunstâncias altamente vexatório para a mulher.
As causas que levam a mulher a optar pelo aborto já foram amplamente debatidas.
A verdade é que ser mãe deve ser uma opção consciente, reflectida e assumida. A liberdade de decisão é, neste caso, absolutamente fulcral. Uma mulher que se sinta infeliz com a responsabilidade de ser mãe, é preferível que o não seja.
Todos sabemos que o espectro social do aborto incide especialmente nas mulheres jovens e nas mães pobres. As primeiras abortam porque não estão preparadas para serem mães, e as segundas, porque são geralmente casadas e já com mais do que dois filhos, não dispõem de meios financeiros, para sustentarem o crescimento da família.
Perante as circunstâncias actuais de carácter económico, social e comportamental, torna-se lógico aceitar o resultado deste referendo. Foi por isso que votei sim. A questão do aborto é hoje um fenómeno civilizacional, faz parte dos supremos desígnios da liberdade e da responsabilização social da mulher. Como cidadão, como marido e como pai, defenderei sempre os direitos da mulher, especialmente na sua livre opção de ser mãe.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Valha-nos Santa Rita, a justiceira do povo


José Carlos Vilhena Mesquita

Após dois anos de governação (infra)socrática, qualquer cidadão tem hoje plena consciência que vivemos tempos de perturbante intranquilidade social, provocada por uma política de cariz absolutamente invertida, que contraria os mais elementares ideais socialistas em que supostamente se deveria inspirar o colégio governativo. Por razões que se prendem ao foro da psicanálise-política, quando o PS assume o governo adopta uma política de direita, hostilizando o operariado industrial e os trabalhadores não-especializados, nivelando-os numa massa informe de proletarizados, de forma a esbater o seu poder de luta e a sua capacidade reivindicativa.
Apoderou-se do país e, sobretudo de quem trabalha, uma angustiante sensação de insegurança e de medo, um lancinante silêncio, um abominável terror branco, que a todos deprime, atormenta e humilha. Vivemos hoje sob o espectro da delação (tal como no tempo da PIDE), aterrorizados com a vil possibilidade de um colega de trabalho nos denunciar ao nosso superior hierárquico só para agradar às chefias, para lhes conquistar a confiança de um cão de fila, e com isso abichar sinecuras e favorecimentos. Vimos disso exemplo no episódico saneamento do Dr. Charrua, em que igualmente se vislumbram os reacendimentos de antagonismos partidários, supostamente apaziguados desde o consulado cavaquista.
A chibata do governo surgiu de forma alarmista, sob a invocação da crise económica. Mas, na verdade, o chicote do poder estrondeou sobre os débeis costados do povo de uma forma indirecta e induzida, mercê do velado apoio que o governo tem prestado aos grandes empresários oriundos dos sectores industrial, imobiliário e bancário, os quais ameaçam impunemente os trabalhadores com o desumano espectro do desemprego. É o terrorismo empresarial com que o governo parece mostrar-se complacente.
Toda esta política tem desembocado numa crescente proletarização dos sectores económicos. Deste modo, o governo vai conseguindo reduzir os serviços terciários, desvalorizando a qualificação, o prestígio e a influência socioeconómica da classe média, sociologicamente considerada como a pedra angular das democracias modernas e saudáveis.
Está claramente visto que a política deste governo se traduz numa absoluta rasoira social. Do seu nominal socialismo, só talvez ainda subsista o cheiro do fumo em que se vem esturricando a dignidade daqueles que, ao cabo de uma vida de trabalho, vêem agora cada vez mais longe a sua reforma, e pior do que isso, vêem cada vez mais perto a ameaça de um despedimento precoce. O que se passou com os professores, com os funcionários públicos ou o que se está a passar com os trabalhadores dos departamentos regionais do Ministério da Agricultura, é simplesmente abominável. A angústia e o terror paira agora sobre a cabeça de todos aqueles que trabalham, e muito particularmente sobre aquela geração que ajudou a levantar o país há trinta anos atrás, sustentando a esperança de ver um futuro mais próspero e mais justo para os seus filhos.
A mais recente bandeira do governo é o flexi-emprego, o flexi-trabalho, e outras flexibilizações que significam a genuflexão dos trabalhadores face aos poderes instalados. Essa flexi-política, imitada dos países nórdicos, não passa de uma contrafacção ciganóide, a exigir rápida intervenção da ASAE. Aliás a flexibilização do emprego e do trabalho, não passa duma política anti-social, de favorecimento e de indulgência dos poderes discricionários, não só do patronato como também do governo. E o que mais me assusta é precisamente a possibilidade do governo poder despedir os funcionários por razões de “flexibilização” dos serviços públicos, o que se traduzirá, a curto prazo, numa onda de saneamento partidário, que poderá mergulhar o país numa sanha de racismo político.
Quem votou no Socialismo Democrático, perfilha logicamente ideais induzidos e conquistados pela Revolução Francesa, cujos valores ético-sociais têm sido estranhamente vilipendiados, abjurados e até postergados por aqueles que precisamente dizem ser socialistas. É nesse aspecto que não se admite nem se justifica a actual política governativa.
Assistimos hoje, placidamente, à inversão total dos ideais socialistas que inspiraram a Revolução de Abril. Nunca, como agora, se viram índices tão elevados de prescrição médica de ansiolíticos, de anti-depressivos e de outros medicamentos estabilizadores do humor, para atenuarem a plangente situação em que se encontram milhares de famílias.
A justificação do falhanço geral deste país reside nos políticos e nesta despudorada partidocracia, que subalterniza os interesses do país, aos seus interesses de grupo e à ânsia de conquista do poder. A incompetência e a desfaçatez tomou conta do país – e tanto valem os do PS como os do PSD. Os homens íntegros, escrupulosos, competentes e honrados, fugiram, ou foram afastados, das fileiras partidárias. Em seu lugar instalaram-se os oportunistas e aventureiros, que os partidos aceitaram sem o mais ligeiro critério de selecção.
Com pungente ironia costumo dizer que em Portugal mal se sabe ler e quase nunca se sabe pensar. O governo, na senda dos seus predecessores, tem-se dedicado à destruição do antigo e exigente aparelho educativo, caricaturando grotescamente o nosso povo no seio da Europa, como sendo inferior e iletrado, quando na verdade têm sido os políticos portugueses a jungir-nos a canga da ignorância com reformas educativas inconsequentes, precárias ineficazes.
Resta-nos a esperança de ver assomar-se no horizonte a mítica sombra do redentor, fruto do proverbial sebastianismo, salvífico e regenerador da alma lusitana. Eis agora, erguida do húmus nacional, a esfíngica figura da justiceira do povo, a nossa Maria José Salgado, miscigenação populista da Padeira de Aljubarrota e do espírito de alterne em que revemos o nosso glorioso passado. Somos um povo encarnado na inveja, uma raça de águias que correram o mundo conquistando glórias, mas que perderam as asas em flamejantes pelejas, contra míticos e poderosos adversários, plasmados na invicta força da sua suprema coragem.
Mas temos agora, a nossa Maria José, qual St.ª Rita de Cássia, padroeira dos impossíveis, cuja força justiceira nos devolverá o orgulho nas glórias do passado, condenando ao degredo os nossos cerúleos adversários.
Abaixo o filosofismo socrático e o verde loureiro da esperança política...
Viva a Santa Ritinha de Cássia, que os nossos seis milhões de votos ainda farão erguer-se à Presidência da República... sem precisar de dar cavaco a ninguém.

P.S. – este texto foi publicado em 2007, e refere-se a duas figuras, que se tornaram excessivamente mediáticas, deixando ao leitor o cuidado de as interpretar. Em todo o caso este texto serve também para identificar o país que temos o e o povo que somos.

domingo, 1 de novembro de 2009

DAVIM, Joaquina Aboim da Ascensão



Benemérita protectora dos desvalidos, nasceu em Faro 1863 e faleceu na mesma cidade em 5-6-1942, com 79 anos de idade.
Esta espécie de mãe dos pobres foi a continuadora do projecto nacional engendrado pelo seu irmão, o benemérito coronel Rodrigo Aboim Ascensão, instituidor em Lisboa da «Associação Protectora da Primeira Infância» e em Faro do «Refúgio Aboim Ascensão», hoje designado por «Emergência Infantil», através dos quais pretendeu dar guarida e protecção às crianças abandonadas ou vítimas de maus tratos, derivando dessa circunstância a designação de “Refúgio”. Era ainda irmã de D.ª Maria da Piedade Ascensão Sande Lemos, que foi casada com o coronel Sande Lemos, um dos grandes obreiros da Associação dos Combatentes da Grande Guerra, que dirigiu ao longo de muito anos, dotando-a aliás de alguns dos seus próprios meios de fortuna.
A bondosíssima senhora, D.ª Joaquina Ascensão, casou-se em Faro com o Dr. Joaquim Rodrigues Davim, que para esta cidade viera colocado como notário, revelando-se um cidadão exemplar e de grande sensibilidade artística, ao ponto de ser considerado nos finais do século XIX, como um dos melhores poetas do Algarve. Não tiveram filhos naturais, mas como a determinada altura soube que seu marido possuía duas filhas, resultantes duma relação extraconjugal com uma modesta costureirinha, mandou que as meninas fossem recolhidas na sua casa, onde as educou e perfilhou, fazendo delas senhoras da primeira sociedade farense. Refiro-me à D.ª Silvina Davim, que conheci bem, casada com o Dr. Mário Lyster Franco, advogado, jornalista e escritor; e à D.ª Olímpia Davim, casada com o Dr. Manuel Rodrigues Júnior, antigo professor liceal, figura muito respeitada na sociedade farense.
A D.ª Joaquina era tia do Dr. José de Ascensão Contreiras, do Eng.º Manuel Aboim de Sande Lemos e do Dr. José Aboim de Sande Lemos, todos figuras de primeira plana na sociedade farense do século XX.
Levada pelos seus impulsos de benemerência e filantropia, qualidades que sempre pautaram a sua existência, legou vários dos seus importantes bens imobiliários ao «Refúgio Aboim Ascensão», à Ordem Terceira do Carmo, ao Seminário de São José e às «Filhas de Maria», todas instituições que na cidade de Faro se encarregavam de proteger os desvalidos e de combater a pobreza.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A inocência dos justos no inferno de Camarate


José Carlos Vilhena Mesquita

Na história política do recém encerrado séculos vinte ocorreram, pelo menos, três crimes políticos que cobrem de opróbrio a nossa memória colectiva. Refiro-me aos assassinatos do rei D. Carlos, do general Humberto Delgado e do Primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro. Passarei em revista os dois primeiros, para estanciar depois no último, o mais próximo no tempo, e talvez o mais infamante de todos, visto que ainda permanece irresoluto.
Em primeiro lugar o assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro, Luís Filipe, perpetrado a 1-2-1908, no Terreiro do Paço, em Lisboa. Foi uma execução pública da mais hedionda barbaridade, que deixou o país envergonhado perante o mundo civilizado. Ainda hoje custa a acreditar como foi possível que se tivesse chegado a tamanho extremo e a tão vil procedimento. Não me recordo de ter ouvido falar num pedido de desculpas à Família Real por parte da República ou do Estado que a representa, nem muito menos da Maçonaria, como autora material do crime e como entidade política responsável por muitas outras atrocidades. Atente-se no bom exemplo da Igreja Católica, ao reconhecer que cometeu graves erros no passado, nomeadamente através da Inquisição, pelos quais teve a honradez e a dignidade de pedir perdão à Humanidade.
O segundo crime político, que aguilhoou as nossas consciências, ocorreu em 1965, quando a PIDE assassinou o general Humberto Delgado, na raia espanhola, próximo de Badajoz. No conceito internacional o país perdeu toda a credibilidade política, sobretudo no Reino Unido e nos EUA, dissipando-se a condescendência de que Salazar usufruíra durante décadas com o seu “fascismo de cátedra” – como lhe chamou Unamuno. Quando o regime caiu, em 25 Abril de 1974, o país exigiu que os culpados fossem julgados. E o certo é que os autores materiais desse hediondo crime foram acusados e condenados em tribunal.
Por fim, o crime que mais enxovalhou o país foi a morte, em 4-12-1980, do então Primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, juntamente com mais seis acompanhantes, entre eles o Ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa. Toda a gente percebeu nessa precisa noite que se tratou de um crime político. Porém, os seus camaradas da política entenderam que tudo não passou de um infeliz acidente. Perante a leitura dos relatórios exarados por peritos internacionais, pelas autoridades policiais e comissões de inquérito, que compulsaram provas e testemunhos indiciários de atentado bombista, parece incrível que durante todos estes anos os políticos se tivessem abroquelado por detrás da tese dum infeliz acidente. E a justiça passou ao lado da verdade.
O processo judicial prescreveu há cerca de três meses atrás. Veja-se o despudor com que se anunciou, urbi et orbi, que um caso de lesa história perdera o seu prazo de validade na justiça portuguesa. Isto é não só ridículo, como é, sobretudo, uma vergonha nacional. Significa tão-somente que a morte ou, mais presumivelmente, o assassinato de várias figuras públicas, sendo uma delas o chefe do poder executivo, tivesse passado impune aos olhos da justiça.
A verdade é unicamente esta: decorreram 26 anos sobre a trágica morte desses justos e inocentes portugueses, sem que nunca se lhes tivesse feito justiça, levando os culpados à barra dos tribunais. E não digam que não sabiam quem eram os autores do crime. Todas as provas indiciavam Sinan Lee Rodrigues e José Santos Esteves como autores materiais do atentado. Ainda há dias este último, que se tornou na figura pública do “Sô Zé”, declarou à revista «Focus» que fora o autor da bomba que matou Sá Carneiro. Mas como não convinha “desenterrar” o assunto, trataram logo de agitar o fantasma do “Apito Dourado” para desviarem a atenção da opinião pública. E o certo é que o caso foi imediatamente “abafado” para dar lugar aos mexericos duma Carolina, artista de alterne, que o país transformou na Maria Madalena do nosso pacóvio provincianismo. Depois do Zé Cabra, do Zé Maria, do Castelo Branco e das putativas figuras do alisbonado jet-set do parolismo nacional, eis que surge agora a celestial Carolina, cujo drama conjugal se tornou num best-seller e fez esgotar as edições da nossa imprensa, que, neste como noutros casos, se tem revelado cada vez mais acéfala, mercantil e sensacionalista.
Francisco Sá Carneiro foi, acima de tudo, um homem honrado, de superior inteligência e fortes convicções políticas, que as circunstâncias políticas e a injustiça dos homens transformariam num mártir da liberdade. Teve uma vida digna, que poderia ter sido longa e auspiciosa, mas que cessou abruptamente há vinte e seis anos atrás, numa fria noite de Dezembro. Entre a penumbra da traição política e a obscuridade duma vil emboscada, paira toda uma nação, ainda estupefacta e aturdida pela infamante interrogação da verdade. A infernal tese da inocência dos lobos na sanguífera noite de Camarate cobriu de opróbrio toda a geração política glorificada em Abril.
A sua mensagem ideológica e os valores éticos pelos quais tanto propugnou, foram em larga medida delidos pelo tempo, ou obliterados da memória nacional por aqueles que lhe sucederam. Foi inquestionavelmente um promissor político traiçoeiramente assassinado no vergonhoso inferno de Camarate.
Um povo pacífico, cordato e ordeiro, como o nosso, não pode rever-se no sangue derramado pelas vítimas inocentes do ominoso crime de Camarate.
O Governo e a Assembleia da República, já que não estão na disposição de levantarem a prescrição do caso Camarate, deveriam pedir publicamente desculpa aos descendentes das vítimas, por terem deixado impunes os algozes daqueles que morreram como justos ao serviço do governo e do Estado português. Enquanto isto não se fizer, cobrir-nos-emos todos de vergonha perante a memória das vítimas.
Enquanto não se dirimir a verdade e não se apontarem os algozes, continuaremos a pronunciar hosanas à glorífica liberdade conquistada ao sol de Abril, mas eclipsada e conspurcada pela occisiva noite de Camarate. A democracia portuguesa jamais conseguirá lavar o rosto angélico da sagrada liberdade com as lágrimas dos seus gloriosos mártires, porque na fímbria do seu divino manto se esconde o sangue dos inocentes, imolados no ominoso covil de Camarate. Somos um país de fatalismos e de brumas sebastiânicas, aguardando expectantemente – não o messiânico salvador, mas tão só a natural e humana justiça, que tarda... mas não deveria faltar.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Aquilo que verdadeiramente entra no livro de António Manuel Venda

A primeira questão que se sobrepôs à leitura deste livro de António Manuel Venda, foi precisamente a mais elementar, isto é, a de saber se efectivamente estava, ou não, perante um romance na verdadeira acepção da palavra, e do teórico conceito que lhe é inerente. O trago de dúvida com que fiquei no final da sua leitura obriga-me a definir os termos e os conceitos em que me exprimo. Um pouco à laia de Voltaire, urge pois aclarar os conceitos com que nos expressamos para que a sintonia das palavras não se disperse na confusão ou no calor da discussão.
Comecemos por definir a palavra Romance, para perceber sem mais delongas aquilo que traduz o seu conceito. A palavra, na sua nudez original, deriva do étimo latino romanice, do qual descende romanicus, que significa, em latim popular, uma narrativa, verdadeira ou imaginária, escrita em prosa ou verso, repartida por cenas, quadros ou capítulos, pejados de pormenores e longas descrições, cuja acção se desenrola através de várias personagens, de entre as quais só algumas assumem o protagonismo de se tornarem no centro da diegese. Isto no que concerne à palavra.
Porém, no que incumbe ao conceito de romance, importa dizer que só muito tardiamente é que o mesmo foi equacionado, numa perspectiva mais simples, mais sintetizada, mas não menos abrangente. Com efeito, só no declinar do séculos XVIII é que se definiu o romance como “uma narração em prosa de uma acção fictícia que tem por quadro a pintura de costumes”. Dito desta forma não há nada mais simples, nem menos directo. E sendo assim, a obra O que entra nos livros, de António Manuel Venda, integra-se inquestionavelmente, tanto no conceito como na palavra, na correcta designação de romance. Não unicamente de “costumes” - porque isso está fora de moda e qualquer dia nem existe – mas de um maravilhoso fantástico, a que mais adiante nos referiremos com relativa acuidade.

Ao longo da História da Literatura Portuguesa publicaram-se diversos tipos de romances: históricos (Romantismo); sócio-moralistas (Naturalismo), ético-científicos (Realismo); político-revolucionários (Neorealismo); anti-dogmáticos e universalistas (Modernismo) psico-surrealistas (Pós-Modernismo), e outros que nem sei até como qualificá-los. Em todos estes modelos de criação ficionista o que está em causa são os costumes das sociedades humanas no tempo e no espaço, numa espécie de simbiose, ou de intercepção espacial, entre a História e a Sociologia.
Ora acontece que este romance, O que Entra nos Livros, afasta-se de todos estes modelos classificativos, ou de todas os movimentos literários que acabei de enunciar sumariamente, muito embora o seu discurso narrativo se integre naquilo a que chamo o “modernismo milenarista”. Isto é, na tentativa de criação artística através do pictorismo ficcionista da palavra, ascendendo a patamares supra-fantasistas, que rapidamente se transformam numa diegese fantástica, surreal, imateral e anti-ascética. Nada de novo, diríamos, se com isso não se cortassem definitiva e diametralmente os cânones da ficção dominante. O paradigma romancista, na sua feição soberana e imperante, preocupa-se com a construção de grandes quadros sociais, ao longo dos quais o autor vai fazendo uma descrição evolutiva dos interesses percepcionais e dos seus consequentes jogos de poder, assim como das virtudes e defeitos dos protagonistas, dos assimilados ou dos desintegrados numa sociedade enquistada nos defeituosos costumes do individualismo social. O romancista torna-se assim num crítico e num psicanalista da sociedade, no que isso tem de mais contraditório e de paradoxal, usando geralmente o amor e as relações laborais nas suas conexões e correspondências com as intrigas que vulcanizam os diversos poderes em que se reparte a vida real. O romancista é, em suma, um ficcionista do real.
No caso presente, a natural bonomia de António Manuel Venda, a sua candura bucólica, a sua inocência e pureza de carácter, insuflada dum certo torpor algarviista, influenciou decisivamente a sua inspiração e consequente criação artístico-literária, visivelmente enraizada nos telúricos vergéis da sua saudável Monchique, onde os romanos procuravam a cura para os seus achaques através do princípio natural da água, ou seja, o termalismo, modernamente designado por SPA, sigla romana que se traduz por “salute per aqua”.
Neste livro, como aliás, em quase todos os outros da sua lavra, a terra-natal, o Algarve e a peneplanície alentejana, que lhe serve hoje de residência e de ninho conjugal, estão presentes com uma insistente acuidade, e até por vezes com inusitado protagonismo . O mesmo acontece com as reminiscência da sua infância e juventude, aqui e ali afloradas, num contrastante quadro dos sentidos, entre a fresca e verdejante montanha e as estivais praias do barlavento algarvio. Essa enriquecedora vivência, a que certamente se conjugaria uma marcante e muito atenta convivência social, serviu-lhe, e provavelmente ainda lhe servirá, para povoar de vida os seus romances, os seus contos e novelas, cujo inquestionável talento, e insofismável sucesso literário, enobrece hoje não só a literatura portuguesa como, muito particularmente, o seu e nosso Algarve.
Relativamente ao estilo, à concepção narrativa deste livro, direi que impera na estruturalização dos seus capítulos uma insistente, e consistente, preocupação realista da envolvente descritiva, através do recurso ao enquadramento paisagístico em que decorre a diegese. A descrição das aves e animais que abundam no montado onde reside, dos pormenores sobre a flora alentejana e sobre o parco coberto florestal, a contrastar com a sua Monchique originária, é uma constante neste romance. A descrição das estradas por onde circula, com as alarmantes brigadas de transito (que por insistência descritiva acabam por o interceptar quase no final do livro), assim como as pessoas que na berma da estrada, nos largos e jardins das aldeias, aguardam serenamente o decurso dos seus dias, numa entediante monotonia. Apesar de aqui e ali depararmos com uma certa acintosidade crítica, contra a ditadura salazarista, mas também contra os políticos actuais, a que não escapam os autarcas, o certo é que a acção do romance decorre de forma lenta e parcimoniosa, à imagem do clima mental, mas também socioeconómico, que se vive nas terras sulinas. Apesar dessa aparente lentidão, desse torpor ao Sul, a minha atenção de leitor (ainda que pouco disponível para a ficção literária), não se conseguiu despegar das páginas que se iam sucedendo, envoltas no crescente mistério da fantasia que paira por detrás das palavras.
O autor, na sua prodigiosa imaginação, assume-se, quase despudoradamente, como personagem principal, como confidente do leitor, e por vezes como um cavaqueador tertuliano, do qual não nos podemos divorciar. Num estilo pós-moderno, o António Manuel Venda encanta-nos com a fantasia dum “mágico velhinho”, figura levemente fantástica, duma bonomia desarmante e quase infantil, muito invulgar por causa dessa inofensividade, contrária à agressividade das personagens surreais que caracterizam este género de literatura.
Acima de tudo, o livro está primorosamente bem escrito, escorreito na linguagem e absolutamente correcto na estrutura frásica e na concordância gramatical, em que por vezes o autor se coloca, diegeticamente, com pruridos de perfeccionista. Numa visão sintética e desconstrucionista da concepção narrativa, eu diria que este livro é uma espécie de alegoria aos Livros e ao Mundo da Escrita, cuja acção se desenvolve num quase monólogo entre o autor e o leitor. Numa estratégia modelarmente concebida, a atenção do leitor é constante e abruptamente interrompida pela desconcertante forma como se encerram os capítulos, deixando-lhe um trago de insaciável curiosidade. Desse estratagema narrativo resulta numa inebriante concentração do leitor na sucessão diegética das páginas, que o leva sempre por diante na progressiva sucessão dos capítulos.
Falando, ainda mais concretamente, deste livro, parece-me que, em primeiro lugar, dele ressalta a surpresa do título: «O que entra nos livros». Assim, de repente, apetece-me dizer que o que está dentro deste livro mais não é do que a própria alma do autor, consubstanciada no seu talento e genialidade, eufemisticamente identificada na figura do “mágico velhinho”. Acima de tudo, o que está dentro deste livro é a rara e mui singular capacidade imaginativo-fantasista do António Venda.
Curiosamente, ao contrário do que seria normal e expectável, este livro não se distancia dos anteriores; bem pelo contrário, engastasse no romance que o antecede, intitulado O Medo Longe de Ti. Não é a sua continuação, como se de uma saga se tratasse, mas antes de um romance de anamnese, em que uma das figuras secundárias e quase inócuas do livro anterior, passou, ou saltou qual malabarista, para o livro seguinte, como se tivesse vida própria, ou, talvez mais concretamente, como se já existisse antes de ser inventado. É a figura do “mágico velhinho”, uma criatura inventada pelo autor, inocentemente inspirado na «Branca de Neve e os Sete Anões», obviamente uma reminiscência da infância, modelado pela sua imaginação no aspecto físico do Dunga, mas com o carácter e os trejeitos do Zangado.
Tudo aparentemente infantil e inocente, mas que no decurso da narrativa se transforma numa misteriosa errância psicanalítica, pejada duma envolvência fantasista e quase fastasmática, geradora dum clima enigmático, nebuloso e enleante. O misterioso e insondável “mágico velhinho”, vagueava pelos livros, saindo de um e entrando noutro, numa irrequieta odisseia entre autores de diversos quadrantes culturais, aparentemente desconexa e sem qualquer critério, mas que, ao fim e ao cabo, revelava ou estava intimamente relacionada com as preferências literárias do próprio António Manuel Venda. Em certo sentido, o “mágico velhinho” constitui a personificação do espírito errante e irreverente do próprio autor.
Mas o mais desconcertante neste romance é o facto de ser apenas constituído por dois personagens, mais essa omnisciente figura do “mágico velhinho”. Em boa verdade, na intercepção dos diferentes estratos narrativos, estão apenas duas personagens, o Autor, especificamente identificado, e o Livreiro, um tal Sapinho Júnior, proprietário duma livraria em Évora, que numa simples carta indagava o “caríssimo romancista” sobre os verdadeiros traços fisionómicos do “mágico velhinho”. Esta missiva funciona como rastilho para despoletar todo o romance em torno de uma absoluta ficção: o “mágico velhinho”, esse pressuposto duende ou gnomo, híbrida figura inspirada no Dunga, um anão do humor infantil, que talvez por humildade do autor nunca poderia transformar-se num Merlim da Corte do Rei Artur.
O certo é que em torno do “mágico velhinho” nasce, cresce e se desenvolve, um belo romance, uma apaixonante história de fantasia e de mistério, que absorve e confunde a atenção do leitor, transformando-se numa espécie de romance policial, sem violência, sem sangue e sem criminosos.
Perante tudo isto, coloca-se-me, porém, e a priori, esta pertinente questão: terão os livros vida própria, e, por isso, a faculdade de gerarem descendência? Terão os personagens de ficção a possibilidade de se tornarem reais e de se independentizarem do berço/livro em que nasceram? Lendo atentamente O que Entra nos Livros, somos levados a crer que sim, os livros reproduzem-se e os personagens podem fugir deles para virem connosco passear por entre as nossas vidas.
José Carlos Vilhena Mesquita

[texto de apresentação do livro O que entra nos livros, da autoria de António Manuel Venda, edição da Ambar Editora, proferido em 29-09-2007, na Estalagem da Fóia, em Monchique]