sábado, 16 de setembro de 2023

António Gomes Afonso, figura cimeira do desporto e do associativismo algarvio

Gomes Afonso, em 2002, numa reunião da AJEA, no Hotel
 Mónaco, vendo-se atrás dele a escritora Conceição Pires 
Foi com enorme consternação que recebi, no dia 8 de Setembro de 2023, a notícia da morte do meu bom amigo António Gomes Afonso, figura modelar de cavalheirismo, de cortesia, de delicadeza e urbanidade. Conheci-o, em Faro, praticamente desde a primeira hora em que me radiquei na capital do Algarve. Era já nessa altura, e estou a falar do final da década de setenta, aquilo a que se pode chamar uma figura pública da sociedade farense. Quando em 1982 o Dr. Joaquim Magalhães me convidou, em nome Rotary Clube de Faro, a proferir uma conferência sobre a «Algarviana», que acabava de entrar no prelo, teve a gentileza de me apresentar o António Gomes Afonso que, nas suas palavras e abalizado conceito, era um homem honestíssimo, moldado nos mais elevados valores da moralidade e da ética. Pude comprovar, ao longo de quarenta anos de franca e cordial amizade, a superioridade ética do seu comportamento cívico, a justeza dos seus atributos morais, a sua bondade e dedicação filantrópica aos mais desfavorecidos.
António Gomes Afonso, não era algarvio, porque nascera em Lisboa, mas tornou-se num indefectível farense desde que aqui chegou para cumprir o serviço militar. Em breve se apaixonaria pela sua querida Maria José, que também conheci muito bem, mulher bonita e inteligente, que se dedicou ao culto das musas com relativo sucesso. Faleceu há mais de uma década, deixando um vazio enorme na alma do Gomes Afonso, que foi superando a solidão com indisfarçável pesar. Julgo que tiveram uma única filha, que foi para Lisboa, onde concluiu os estudos superiores e se dedicou à docência.
Gomes Afonso na Ria Formosa, em 2016, numa visita de 
estudo promovida pelo Rotary Clube de Faro
O Gomes Afonso será para sempre recordado como um homem do desporto, um senhor do futebol algarvio, e um gentleman da sociedade farense, pelas diversas actividades sociais que desempenhou, em prol da cultura, do livre pensamento e do associativismo cívico. Quando jovem evidenciou uma especial afeição pelo futebol, mas como em tudo o que fez na vida nada mais quis do que ser útil, acabaria por seguir a carreira da arbitragem, que cumpriu durante muitos anos, sempre com isenção, imparcialidade e competência. Creio que em prestígio e sucesso, só o José Rosa Nunes teve uma carreira a nível nacional mais consagrada, com presenças em competições nacionais com grau de exigência máxima.
O primeiro emprego, e único que desempenhou até à aposentação, foi o de funcionário da extinta Direção Hidráulica do Guadiana, na qual viria a desfrutar da amizade do seu director, o engº Tito Olívio, o mais famoso poeta vivo do Algarve. É curioso que ambos engrandeceram com o seu desinteressado esforço a sociedade farense, desde os anos sessenta até aos nossos dias. Fizeram-no quase a par um do outro, por altruísmo de carácter, mas também por serem da mesma geração, a última que produziu cidadãos íntegros, honrados e virtuosos.
Gomes Afonso, saudando a bandeira nacional,
na sede do Rotary Clube de Faro, em 2020.
Aposentou-se ao cabo de quarenta anos, na antiga da Hidráulica do Algarve, onde sempre diligenciou servir o Estado e o interesse nacional, com proficiência e seriedade. Mas, a par da vida profissional, manteve assídua dedicação ao Sporting Clube Farense, no qual ao longo de cinquenta anos desempenhou diversas funções, nomeadamente o cargo de secretário-geral do clube, na intensão de ser útil e de assessorar os mais proficientes a desempenharem cargos de chefia. O Gomes Afonso, na sua educada humildade, não apreciava o protagonismo da ribalta, mantendo-se numa apagada, mas profícua, colaboração com as chefias do Sporting Farense, assim como doutras organizações sociais a que emprestou o melhor das suas competências. Atente-se, como exemplo, nos anos áureos de Fernando Barata, figura cimeira da hotelaria e do desporto algarvio, que após ser eleito Presidente do Sporting Farense, nomeou o Gomes Afonso como secretário permanente do clube, e seu braço direito, numa profícua cooperação de esforços que resultou na subida ao escalão maior do futebol nacional. E quando Fernando Barata saiu do clube, para assumir a presidência do Imortal de Albufeira, levou consigo o Gomes Afonso para conseguir alcandorar aquela agremiação a uma posição nunca antes atingida.
Gomes Afonso, ao lado de Helena Louro,
homenageado em 2022 pelo Rotary de Faro
Apesar de algumas desilusões e de escusadas ingratidões, Gomes Afonso nunca deixou de prestar o seu valioso contributo, desinteressado e gracioso, em prol do desporto algarvio. Nesse âmbito, ocupou-se durante largos anos como colaborador da Associação de Futebol do Algarve, primeiro como coadjuvante executivo, isto é, disponível para todo o serviço, e depois como relator dos processos disciplinares instaurados pela AFA aos atletas e dirigentes federados. Ninguém melhor do que ele para essas funções, em face da sua experiência como árbitro, dos seus conhecimentos directivos e jurídicos do futebol, e sobretudo do seu impoluto carácter de cidadão probo e honrado.
Para além disso, e ainda no campo desportivo, não podemos olvidar a sua prestimosa colaboração como dirigente de outras coletividades e associações distritais ligadas às modalidades amadoras, de entre as quais importa destacar o seu esforço para a reafirmação da Associação de Boxe do Algarve, na qual conseguiu reorganizar a situação contabilística e fiscal, permitindo que a mesma pudesse voltar a receber apoios e subsídios estatais. Destaco também o seu esforço e dedicação em prol do desporto juvenil, organizando sucessivos torneios de futsal no Jardim da Alameda, onde durante o verão conseguiu atrair a juventude para o desenvolvimento de actividades saudáveis, desviando assim os jovens dos perniciosos vícios da ociosidade.
No plano social importa lembrar que Gomes Afonso desenvolveu também um importante papel de cooperação em actividades culturais, associativas e de lazer social. Entre outras destaco o seu papel na Associação Filarmónica de Faro, fundada pela Câmara Municipal, em Junho de 1982, na qual conseguiu reunir um conjunto de pessoas que encontraram na música um sentido especial para o entendimento das suas vidas. Foi também pela sua dedicação e esforço que a Associação Filarmónica de Faro recebeu em 1998 o Estatuto de Utilidade Pública, e em 2003 a Medalha da Cidade de Faro, grau Prata.
Última homenagem que o Rotary Clube de Faro prestou ao
seu dedicado secretário-geral António Gomes Afonso
Também não podemos esquecer que em 1976, Gomes Afonso tendo em vista a promoção da leitura sugeriu a criação da primeira Feira do Livro de Faro, ao presidente da edilidade de então, Eng,º Joaquim Lopes Belchior, um homem de aparência rude na qual se escondia um espírito de eleição, pela sua inteligência e cultura. A Feira do Livro teve lugar no Jardim Manuel Bivar, e os proventos daí resultantes revertiam a favor da Misericórdia de Faro. Desde então este importante certame cultural tem-se realizado sem interrupção, e ainda hoje constitui um dos principais eventos culturais do município farense.
Mercê do seu bom carácter e honestidade, Gomes Afonso sempre se disponibilizou a colaborar com as organizações associativas locais, sendo o Rotary Clube Faro a principal a que emprestou os melhores anos da sua longa vida. Quem, como eu, privou de perto com o Rotary, sabe perfeitamente que o Gomes Afonso fazia tudo o que fosse preciso, sem dar nas vistas nem pedir os louros do sucesso. Era a modéstia em pessoa. Por isso, os rotários como representantes da competência profissional e da filantropia social, decidiram num acto de plena justiça nomeá-lo secretário-permanente e sócio honorário do Rotary Clube de Faro. Na verdade, ninguém melhor do que o António Gomes Afonso reunia na alma o espírito benemerente que insuflou vida àquela organização: “Dar de si sem antes pensar em si”. Ele foi assim toda a vida, dava o melhor de si sem nada receber em troca, e disso tenho provas quando comigo colaborou na realização de alguns eventos promovidos pela AJEA – Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve.
Em reconhecimento dos serviços prestado à cidade, a Câmara Municipal de Faro conferiu-lhe a Medalha de Dedicação ao Município de Faro – Grau de Ouro.
António Gomes Afonso, faleceu no dia 8 de Setembro de 2023, aos 95 anos de idade. A sua alma repousa na mão direita de Deus Pai, ao lado dos homens justos que praticaram o bem-comum.
As cerimónias fúnebres decorrem na próxima segunda-feira, dia 11, a partir das 10h00, na Igreja do Convento de Santo António dos Capuchos, em Faro, junto ao quartel da GNR. O funeral sai à 15 horas para o Cemitério da Esperança, em Faro.
Resta-me apresentar a sua filha, e restante família enlutada, as minhas sinceras condolências pela insubstituível perda de um homem bom, generoso e íntegro.

domingo, 29 de janeiro de 2023

Um epitáfio para João de Deus

O poeta das crianças - na sua efígie coroada de louros
 e na evocação da sua Cartilha Maternal - foi aproveitado
 para diversos fins, nomeadamente publicitários, como
 aqui se comprova nesta lindíssima caixa de bolachas.
O poeta João de Deus, ainda novo,
 numa pose de burguês, muito adversa
 à sua mentalidade de homem do povo.
Falei aqui, há bem pouco, do "poeta das crianças", João de Deus, nascido na ridente, e hoje prospérrima, aldeia de São Bartolomeu de Messines, no histórico concelho de Silves. Disse que estava o seu féretro depositado no Panteão dos Jerónimos, todavia o seu desejo seria ficar sepultado ao lado dos pais na sua aldeia natal. É essa derradeira vontade que transparece, cristalina e indubitável, no seu magistral poema "Pátria", do seu imortal e inigualável, «Campo de Flores», 5.ª ed., Lisboa, Liv. Aillaud e Bertrand, s/d, tomo I, p. 313.
Aqui vos deixo na íntegra esse belíssimo poema, do qual ressalto o último verso, que o meu amigo João Leal, decano dos jornalistas algarvios, tanto gostava de evocar nos seus arrebatantes discursos:
Casa onde passa por ter nascido o poeta, na sua aldeia
 natal de São Bartolomeu de Messines. A imagem de
 humildade que dela transparece está bem de acordo
 com o espírito do poeta, razão pela qual foi muito
 aproveitada pelo Estado Novo.

Como o pródigo volta ao lar paterno
Desenganado do que em vão procura,
Eu já desfalecido nesta lida
De sonhos sobre sonhos de ventura,
Desejava dormir o sono eterno
Abrindo junto ao berço a sepultura!
Fechar em suma o círculo da vida
No saudoso ponto de partida!

Chegado pois. Senhor, aquele dia
Que se me apague a luz que me alumia,
Deixai-me descansar onde repousa
Meu santo pai, e sua terna esposa
— A minha santa mãe!
Ser-me-à assim mais leve a fria lousa...
Que a terra onde se nasce é mãe também!

sábado, 21 de janeiro de 2023

Efemérides do Algarve – 15 de Janeiro

Pesca do Coral, gravura antiga
1450 – O rei D. Afonso V, concedeu licença por cinco anos, ao seu tio, Infante D. Henrique “o navegador”, para explorar a pesca de coral na costa algarvia.
Sabemos que a pesca do coral vermelho, se exercia no Algarve desde as colonizações púnica e árabe. Mas, a partir do domínio cristão deve ter-se extinguido. Estranhamente, no século XV, voltou a ser explorada nas costas do Algarve. Sabemos disso através de uma carta do Cabido da Sé de Silves, datada de 16-04-1462, para o rei D. Afonso V, a queixar-se de um tal Carlos Florentim [ou florentino], residente em Lagos, que tendo extraído muito coral não quisera pagar o dizimo àquela diocese, razão pela qual foi excomungado. A partir daí a pesca do coral morreu. Mas, em 1711, surgiu um alvará concedido por três anos a Vicente Francisco, para retomar a actividade, dizendo, porém, «que nas costas do reino do Algarve houvera antigamente pescaria do coral, a qual se perdera por incúria dos homens, ou por falta de cabedais». Não deve ter alcançado sucesso, porque o assunto da pesca do coral silenciou-se definitivamente.
O que resta do edifício do Compromisso Marítimo de Lagos
1749 – O rei D. João V passou uma Provisão para reverter a designação da Irmandade do Corpo Santo dos pescadores e marítimos de Lagos, fundada por D. Manuel I, para Compromisso Marítimo de Lagos. O Estado Novo através da Lei n.º 1953, de 11-3-1937, transformou os antigos compromissos em Casa dos Pescadores. Após o 25 de Abril, o Decreto-Lei n.º 49/76 de 20-1-1976, alterou a sua designação para Caixa de Previdência e Abono de Família dos Profissionais de Pesca.
1773 – O rei D. José I assinou nesta data a criação da Companhia das Reais Pescarias do Algarve, concedendo-lhe o exclusivo da pesca do atum e da corvina por um período de doze anos. Os privilégios da Companhia foram sendo sucessivamente renovados, por períodos de dez anos, para favorecer a pesca do atum, cujos rendimentos eram avultadíssimos. Com o advento do Liberalismo os privilégios de exclusividade foram suprimidos em 1835, e a velha empresa pombalina alterou a sua designação para Companhia de Pescarias do Algarve.
Por outro lado, as suas zonas de exploração exclusiva da pesca do atum, pelo método de cerco (armações ou almadravas), foram sorteadas e concessionadas às empresas que as disputaram em concurso, nomeadamente a Companhia de Pescarias Lisbonense, para a faina nas praias de Faro e Tavira (atum de direito), e em Portimão e Lagos (atum de revés). Com a Regeneração e a vigência do Fontismo, abriu-se caminho à implantação do Capitalismo no nosso país, razão pela qual se refundou o capital social da Companhia através da sua subscrição pública por acções, com benefícios e distribuição anual dos lucros aos accionistas. A fundação da Companhia serviu de propósito à edificação de Vila Real de Santo António, onde primeiramente ficou sediada, passando no início do século seguinte para Faro, encontrando-se actualmente com sede oficial no porto de pesca de Olhão. Apesar de nos finais da década de oitenta do século XX, ter estado quase insolvente, o certo é que conseguiu subsistir até hoje, através de uma profunda remodelação. Seguindo os caminhos da modernização, deixou a faina pesqueira para se dedicar à aquacultura “offshore”, isto é, à criação piscícola em mar aberto, técnica em que foi pioneira no nosso país, dedicando-se actualmente à produção de bivalves, nomeadamente de mexilhão, ostra e vieira, sem esquecer a amêijoa e o berbigão. No contexto do tecido empresarial português, a Companhia de Pescarias do Algarve é certamente a mais antiga, cujas raízes históricas têm merecido a atenção de muitos investigadores nacionais e estrangeiros.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Efemérides Algarvias – 11 a 13 Janeiro

O poeta João de Deus, com os seus filhos, vendo-se
 a esposa na varanda fronteira à sua casa de Lisboa
11 de Janeiro de 1896 – morre em Lisboa o poeta João de Deus, consagrado na memória lusíada com o epíteto de “poeta das crianças”, por ter dedicado grande parte da sua vida à invenção de um método pedagógico de leitura, para ser utilizado no ensino primário. Era algarvio, natural de São Bartolomeu de Messines, e tinha a bonomia prazerosa das gentes meridionais. Os amigos, que os teve em grande número, descreviam-no como homem ponderado, de voz macia e dócil, com raras exteriorizações da gloriosa auréola de pândego, que o tornaram famoso nos dez anos que demorou a concluir o curso de Direito, em Coimbra, tantos quantos demorou Agamémnon a conquistar Tróia – dizia em amena galhofeira o então jovem poeta.
O poeta caricaturado por Bordalo Pinheiro
João de Deus, que é hoje um verdadeiro “Pai da Pátria” – e por isso repousa no panteão dos Jerónimos – foi um homem bom, generoso, sério e honrado, um grande talento nacional, sempre lembrado como o poeta do «Campo de Flores» e o pedagogo da «Cartilha Maternal», cujo método de leitura ajudou sucessivas gerações de crianças pobres a saírem da aviltante situação do analfabetismo e, por isso, submissas vítimas da desumana exploração que se viveu nos campos e nas fábricas deste país. Na batalha da educação nacional e na guerra contra o obscurantismo, João de Deus foi um verdadeiro herói, um grande português a quem presto nesta singela evocação a mais sentida homenagem.
13 de Janeiro de 1754 – A faixa costeira algarvia, desde a ponta de Sagres até Tavira, foi assolada por um violento furação, com ventos fortíssimos, que se presume, pelos estragos causados, serem equivalentes às rajadas de duzentos km/hora que hoje se verificam em iguais cataclismos. Acresce que a este ciclone sucederam chuvas torrenciais, que pioraram a situação de habitabilidade nas casas térreas, as quais na freguesia de S. Pedro correspondiam à principal mancha urbana, visto ser uma área habitada maioritariamente por pescadores e gente pobre da cidade.
Igreja de S. Pedro em Faro, vendo-se a torre que caiu
Por isso, foi em Faro, que se registaram os estragos mais avultados, com destelhamentos e derrocada de casas, nomeadamente a torre da Igreja de S. Pedro, cujo desabamento sobre os casebres vizinhos, causou colossais prejuízos. A perda de vidas parece, todavia, ter sido muito significativa nas Terras do Cabo, correspondente ao antigo concelho de Sagres cuja quebra demográfica justificaria a sua extinção em 6-11-1836, com a reforma administrativa de Passos Manuel, a mesma que abateu o Reino do Algarve, dando lugar ao distrito de Faro. Já agora, acrescento que a histórica vila de Sagres andou em sucessivas bolandas administrativas. Primeiro foi a sua transmutação em 1836 no concelho Vila do Bispo, depois passou em 1855 para o de Lagos, recuperando a sua autonomia em 1861, voltando em 1895 a ser reanexado ao de Lagos, até que em 1898 seria definitivamente restaurado, na sua designação e território.
13 de Janeiro de 1904 – Estabeleceu-se o contrato entre o Governo e a firma «Macieira & Filhos» com vista ao restabelecimento das carreiras regulares por via marítima, entre Lisboa e o Algarve, com escala em Portimão, Faro e Vila Real de Santo António. Este contrato foi decisivo para o desenvolvimento económico do Algarve, já que as comunicações por terra se resumiam praticamente ao caminho de ferro, que só chegaria à foz do Guadiana em 1906. Os transportes de mercadorias, por grosso e em larga escala, só eram economicamente viáveis por via marítima, que permitia a trasfega no porto de Lisboa para os diversos mercados da Europa. Além disso, as principais empresas comerciais do trato internacional, sediadas no Algarve, eram estrangeiras, de origem inglesa, francesa, espanhola, italiana, etc.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Benfica-Sporting, farsa em um acto

A propósito do dérbi que se disputou esta semana na capital, entre o Benfica e o Sporting, lembrei-me de trazer aqui à colação dos meus leitores, a existência de um raro folheto, que guardo ciosamente na minha «Algarviana», intitulado Benfica-Sporting – Farsa em um Acto, da autoria de António Augusto dos Santos, editado em 1958 na velha tipografia União, propriedade da diocese de Faro.
O autor, que conheci muito bem, era então um jornalista da velha guarda, culto e inteligente, cavalheiro educado, gentil e sempre bem vestido, ao estilo britânico. Era alto, de recorte atlético, seco de carnes com voz de tenor, que se curvava ou descobria a cabeça, sempre que se cruzava com gente da sua privança. E do seu trato comum, a bem dizer, era só gente grada. O que não era o meu caso, visto ser então um jovem obscuro, ao contrário dele, que era um respeitável ancião. Ainda assim, tínhamos amigos comuns, como o Aníbal Guerreiro, antigo jornalista e um dos mais prestigiados empresários de Faro, o João Leal, hoje decano da imprensa algarvia, o Dr. Joaquim Magalhães, antigo reitor do Liceu, o Dr. Pinheiro da Cruz, professor da Tomás Cabreira, o Brito Figueiras, um gentleman que servia de mestre de cerimónias nos eventos da cidade, e tantos outros, que à memória não afluem neste instante.
O certo é que, por via da nossa frequência nas colunas dos jornais, tornamo-nos amigos com direito a cordiais cumprimentos e breves palavras de circunstância, porque a diferença de idades e estatuto de cidadania faziam-me muito pequeno a seu lado, mais do que a sua estatura física permitia aquilatar.
A única forma que tive de o compensar pela admiração que lhe dedicava, foi ter-lhe atribuído há cerca de dez anos, como membro da Comissão de Toponímia de Faro, uma praceta com o seu nome, algo distante do centro da cidade, é certo, mas ainda assim na freguesia de São Pedro, de que foi devoto e tanto acarinhou enquanto munícipe. A sua biografia, que anexo no final desta breve evocação de António Augusto Santos, escrevi-a para o meu «Dicionário dos Jornalistas e Colaboradores da Imprensa Algarvia», que permanece ainda inédito, e certamente assim permanecerá até ao fim dos meus dias.
António Augusto Santos
Resta-me acrescentar que esta “farsa em um acto” sobre uma suposta final da Taça de Portugal em 1958, não pretendia, segunda as palavras do próprio António Augusto Santos, caricaturar ninguém em particular, e muito menos os clubes em contenda, pelos quais tinha o maior apreço. Apenas escolheu os clubes da capital por serem os mais populares, e os que congregam, ainda hoje, mais adeptos. A peça só tem dois personagens.
Um é material, aqui designado como “T.S.F.”, que se percebe ser um rádio (ou telefonia, como se diz no Algarve), que o cidadão remediado possuía na sala de visitas para ouvir as notícias, as variedades ao almoço, os parodiantes de Lisboa, o folhetim radiofónico, e, aos domingos, o sacramental relato da bola, que entre as 15 e as 17 horas fazia as delícias e arrelias dos bons chefes de família.
O outro é físico, designado como Pedro Lagarto Verdelhão, de 45 anos de idade, identificado no texto simplesmente como “Lagarto”. Sem constituir uma personagem, aparecem também no meio da peça as interjeições da “Família”, que se presume ser a voz da esposa do “Lagarto”, pronunciada numa outra sala da casa, perguntando-lhe o resultado, se foi golo e de quem, ou, quando este grita com maior veemência, mandando-o calar porque o Zéquinha está prestes a pegar no sono. Ainda por cima a “Família” trata-o por “Lagartinho”, o que é de arrancar os cabelos.
A farsa em si, ocupa catorze páginas de um denso diálogo, entre os dois personagens, pronunciado na intimidade das paredes do lar, entre o “Lagarto” que critica a tácita e as escolhas do treinador, que desconfia da verdade desportiva, e que, por fim, vocifera contra o árbitro em desaprovação das suas decisões. Por vezes chama-lhe bandido, gatuno, urso de pelo… até chegar ao ponto de lhe desejar a morte. Como se percebe, o personagem físico é um sportinguista ferrenho, diria antes fanático, que deposita as suas esperanças nos violinos comandados pelo Peyroteo. O Sporting termina a primeira parte a vencer por 3-1, mas na segunda o Benfica, com Arsénio e Corona em destaque, chegou ao empate. Para desespero do Lagarto, que ouve pela rádio as incidências do desafio, o árbitro parece ter sido o culpado do triste desenlace, já que anulou aos 95 minutos um golo ao Sporting, prolongou a contenda até aos 112, altura em que Jesus Correia do Sporting centra para a área e Félix, defesa do Benfica, corta a bola com a mão. Penalti grita o povo, mas o árbitro fez “vista grossa” e deu por encerrada a contenda. O público insurge-se nas bancadas, mas a polícia e a guarda republicana “puseram termo ao conflito distribuindo «mãozinhas» de cavalo à portuguesa”.
Enquanto as equipas descansam por dez minutos até se reatar a partida com um prolongamento, o árbitro faz declarações à rádio para justificar as suas polémicas decisões. Mas, quando o árbitro teve o desplante de confessar à antena: “Neste 2º tempo, o Benfica, sabe… jogou mais”. Aí foi longe de mais, e o “Lagarto” não se conteve, caindo sobre ele a pés juntos esmagando-o numa ânsia de vandalismo: “Ah gatuno que ainda tens arrojo de falar desse modo”. E pronto, acabou-lhe com as válvulas, com o apito e com o pio. O prolongamento e o resultado final é que jamais saberemos, porque a TSF ficou em cacos aos pés do Lagarto.
Frontespício do folheto
Depois de ler esta “farsa” percebi o talento e as intenções do António Augusto Santos, ao caricaturar as dores e o sofrimento mental dos adeptos de futebol, perante as incidências dramáticas do nosso desporto rei, colocadas nas mãos de um único juiz, de que todos desconfiam, quer da competência quer sobretudo da isenção e honestidade. A ironia é um dos principais condimentos literários desta peça, a outra é a crítica exasperada à nossa proverbial desconfiança da integridade moral de quem decide, de quem ajuíza, face à paixão e fanatismo que caracteriza o adepto de futebol. Acrescento, porém, que para as gerações actuais deve ser difícil perceber quem foram os jogadores aqui citados, porque já todos faleceram, embora deva dizer que se fossem hoje atletas do Benfica e do Sporting, seriam dos melhores entre os melhores do mundo. Disso não tenho a menor dúvida.
Termino com esta saborosa descrição do cenário em que decorre a farsa «Benfica-Sporting»:
«Escritório em estilo Peyroteo, com o que há de mais requintado em Azevedo I. Estante, floreiras, cadeiras e secretária em estilo Jesus Correia. Carpete com um grande leão ás listas – o que há de mais Travassos II. Telefonia da marca R.A.D.I.O… . Sobre um sofá, um violino que não é propriamente um Stradivarius, mas uma recordação saudosa da velha orquestra de Alvalade. Albano e os restantes companheiros de equipa, não foram esquecidos. Vemo-los por todos os ângulos do escritório, dispostos aos pares em escalas diversas…»
Ah, já me esquecia de dizer, nesse ano de 1958 quem ganhou a Taça de Portugal foi o meu F. C. do Porto, que derrotou o Benfica por 1-0.
A biografia de António Augusto Santos poderá ser consultada, e descarregada, no meu blogue «Algarve - História e Cultura», através do seguinte link: 
http://algarvehistoriacultura.blogspot.com/2023/01/antonio-augusto-santos-jornalista-poeta.html

domingo, 30 de janeiro de 2022

Honorato Santos, um ignorado historiador do Algarve

 Investigador e publicista, Honorato Artur Pires da Silva Santos, de seu nome completo, nasceu em 1879, na cidade de Faro, mais propriamente na belíssima casa do Cercado da Atalaia, que lhe pertencia e que ainda conheci, naquele peculiar traço arquitectónico genuinamente algarvio, mas que julgo ter sido expropriado para expandir a cidade, erguendo-se no seu lugar uma daquelas inestéticas torres habitacionais, uma “caixotada” de betão, muito similar a pombais humanos. Quando a filha, a Dr.ª Mariana Santos, foi viver para Coimbra e depois para Lisboa, resolveu acompanhá-la e aí continuar as suas aturadas pesquisas sobre o passado histórico do Algarve, tornando-se por essa razão num assíduo frequentador da Biblioteca Nacional e da Torre do Tombo. Faleceu em Lisboa, no amparo da sua única filha, a 4-2-1968, com quase 89 anos de idade.
Era um cidadão muito estimado e bastante respeitado entre os seus conterrâneos, mercê da sua finíssima educação e lhaneza de trato, assim como pela consideração social a que os seus razoáveis bens de fortuna davam plena justificação. Possuía uma privilegiada memória, era inteligente, perspicaz e persistente na sua avidez pelo conhecimento. Tornou-se conhecido pela sua natural apetência para a música, sendo um apreciado instrumentista de piano, frequentador das nobres tertúlias citadinas que se reuniam nas casas mais abastadas para cultuarem a arte de Orfeu.
Mais insaciável do que a música era a sua curiosidade em aprender a razão de ser das coisas, quer da simples agricultura até aos mais avançados segredos da ciência. Interessava-se por tudo. Porém, eram as coisas do passado que mais prendiam a sua atenção. Desde as famílias nobres até aos heróis populares, que se haviam distinguido ao longo dos séculos; desde os vestígios das mais antigas ocupações humanas até aos mais nobres edifícios do Algarve, tudo isso o interessava e lhe ocupava as horas de descanso para aprender e saber sempre mais. Tanto em Faro como em Olhão o nome do Honorato Santos era sinónimo de louvável dedicação à leitura, de rara persistência ao estudo e de forte apego à investigação histórica. As centenas de nótulas e pequenos artigos sobre “Velharias Históricas do Algarve” valeram-lhe a nomeação para o Instituto Arqueológico do Algarve, que era aliás o único título de que se orgulhava, e do qual fazia alarde nos seus cartões de visita.
Desempenhou diferentes cargos públicos na cidade de Faro, nomeadamente na Fazenda Pública, na Câmara e na Junta Escolar de Faro. Também dava aulas particulares de piano para jovens iniciados nos segredos da arte de Orfeu.
Não sei porque razão era vice-cônsul honorário da Bolívia em Faro, mas desconfio que fosse derivado das suas relações de amizade com algumas famílias ligadas ao negócio de exportação de frutos secos, cortiças, azeite e outras mercadorias regionais.
Entre os cargos que graciosa e honradamente desempenhou, destaca-se a de Sindico da Ordem Terceira de S. Francisco de Faro, prestando relevantes serviços de assistência social, no combate à indigência e no auxílio à saúde pública.
Em livro, com letra de imprensa, nunca deu à estampa nenhum dos seus trabalhos. É certo que tudo o que escrevia era bastante sintetizado, pequenas súmulas sobre pessoas e factos, instituições e monumentos do passado histórico algarvio. No fundo eram apenas curiosidades que se tentavam aclarar, resumos de teses elaboradas por autores consagrados, compilações de citações avulsas, transcrição de documentos publicados em obras raras, enfim um caudal de “coisas e loisas”, uma espécie de bric-à-brac da História do Algarve. Nunca escreveu uma obra de fundo, com verdadeira importância para o avanço da historiografia nacional. A maioria desses estudos, ou pequeníssimas monografias, “editou-as” ele em curiosos caderninhos manuscritos, guarnecidos com belas molduras geométricas, de cornucópias e arabescos coloridos, ilustrados com o brasão de Faro, esquissos de monumentos e outros desenhos, a maioria dos quais muito infantis e meramente decorativos. Esses “canhenhos” de notas históricas - encapados em papel de fantasia com motivos florais, ou em papel vegetal de diferentes cores – “editava-os” em várias cópias manuscritas, oferecendo-os ainda em vida aos amigos e familiares, encontrando-se hoje dispersos pelas bibliotecas regionais, pelas livrarias particulares de alguns bibliófilos (como é o meu caso) e até pelos alfarrabistas, que os vendem como preciosidades da historiografia regional. Os exemplares que possuo estão datados de Lisboa na década de cinquenta, mas tenho um exemplar sobre o brasão de Faro datado de 1941.
Guardo esses exemplares com enorme carinho, como se fossem raros espécimes bibliográficos, tendo por eles uma grande estima e sentimento de preservação, não só por serem manuscritos da sua própria mão, numa caligrafia muito redonda e regular, própria de um copista conventual, como também pelo facto de sentir que neles pulsa ainda, no seu vigor natural, a personalidade e o belo carácter do cidadão exemplar que foi Honorato Santos. Não sendo iluminados, como os velhos «Livros de Horas», contém também lindos desenhos de flores, borboletas, joaninhas, anjinhos, enfim, inocentes figuras decorativas com que ilustrava e enriquecia os seus humildes apontamentos, compulsados nos seus "infantis" cadernos. Esses curiosos estudos de Honorato Santos, embora sejam uns subsídios da história, algarvia redigidos com extrema humildade por quem não se sentindo um investigador gostava, porém, de dar pública notícia das suas incursões pelas bibliotecas e arquivos nacionais, aonde a esmagadora maioria dos seus comprovincianos nem sonhava vir a frequentar. Refiro-me à Biblioteca e Arquivo Histórico da Universidade de Coimbra, à Biblioteca Nacional e à Torre do Tombo, locais de culto da erudição nacional, que, em longas e determinadas épocas, foram uma espécie de segunda residência do Honorato Santos.
No fundo são preciosidades da esmerada generosidade e amor regionalista deste farense, hoje tão injustamente esquecido, cuja filha, a Dr.ª Mariana Santos, foi digna herdeira ao tornar-se bibliotecária-arquivista na Universidade de Coimbra e no Palácio da Ajuda, procedendo a aturadas investigações sobre a história da cultura e da filosofia portuguesa.
Creio que a estreia do Honorato Santos como colaborador da imprensa algarvia se terá efectuado nas colunas de «O Heraldo» de Faro, logo depois da implantação da República. Em «O Algarve», também de Faro, publicou dezenas de pequenos artigos sobre história local, etnografia e literatura algarvia. Mas foi no semanário «Correio do Sul» que mais se distinguiu, quando em 18-11-1928 iniciou a publicação da secção “Coisas Antigas do Algarve”, na qual deu a público centenas de nótulas sobre os mais diversos factos históricos e os mais relevantes monumentos da região.
Para futuras pesquisas da sua obra completa, devemos acrescentar que Honorato Santos, como emérito estudioso da história algarvia, colaborou nos seguintes órgãos da imprensa regional: «O Algarve» (1908), «Alma Luzitana» (1919), «Correio do Sul» (1928) «Anais do Município de Faro» (1969), neste caso já a título póstumo, com a edição pública e em primeira mão da pauta musical da "Valsa Faro" que compôs em honra da sua cidade natal.
Foi casado com D. Palmira Rita Machado Gonçalves dos Santos, falecida em Lisboa a 1-1-1945 e de quem teve, como já se disse, uma única filha, a Dr. Mariana Amélia Machado Santos, que além de ter sido assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e autora de valiosa obra científica na área das ciências sociais e humanas, seguiu depois a carreira de bibliotecária-arquivista na Biblioteca Nacional de Lisboa.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

D. António Barbosa Leão, bispo do Algarve

Aquele que foi um dos mais famosos prelados do Algarve, nasceu em Parada Todeia, antiga freguesia do concelho de Paredes a 17-10-1860 e faleceu como Prelado da Diocese do Porto a 21-6-1929. Era filho de Manuel Barbosa e de Maria Barbosa Leão, casal humilde, mas de inquestionável honradez, dedicação ao trabalho e grande seriedade.
Estudou no Colégio do Carmo, em Penafiel, e no Seminário Episcopal do Porto, onde se ordenou presbítero a 1-8-1886. Exerceu o professorado no Colégio da Formiga e no Seminário dos Carvalhos, até que em 4-9-1890 tornou-se pároco da freguesia da Lustosa no concelho de Lousada. Aí se manteve até 21-12-1904, passou a dedicar-se à pregação apostólica. A fama da sua erudição chegou ao conhecimento do governo e da Coroa que sugeriu a Roma, ao Papa Pio X que o nomeasse Bispo de Angola e Congo, o que sucedeu em Julho de 1907, depois do decreto de 13-2-1906 o haver incumbido dessas funções. Mas quando o bispo do Algarve, D. António Mendes Belo, foi designado Patriarca de Lisboa, o governo por decreto de 7-11-1907 nomeou D. António Barbosa Leão para o substituir na diocese de Faro, o que seria confirmado por Roma no mês seguinte. O novo prelado recebeu com satisfação a incumbência de dirigir a diocese algarvia, funções que desempenhou com competência e sentido de responsabilidade entre 3-4-1908 e 28-8-1919. Durante esse período desenvolveu algumas actividades e tomou posições notáveis no seio da diocese, nomeadamente em Dezembro de 1908, quando enviou a todos os párocos um inquérito para que estes respondessem acerca da antiguidade histórica da freguesia, rendimentos e outros meios de subsistência dos párocos. As respostas a esse inquérito são hoje muito consultadas pelos historiadores locais.
D. António Barbosa Leão, bispo de Faro

Por outro lado, em 1-2-1909, publicou a Pastoral da Páscoa, na qual abordava o ensino religioso. Em Fevereiro, mas do ano seguinte, apresentou ao governo um “Memorial” sobre as Côngruas como meio de sobrevivência dos párocos, enviando em Setembro um “Relatório” complementar, no qual sugeria os melhores meios para se proceder a uma nova dotação dos benefícios paroquiais. Mas quando dias depois se implantou a República tudo se alteraria na vida religiosa do país. A publicação da “Lei da Separação da Igreja do Estado” agravaria as relações políticas entre os dois poderes. Como reflexo desse antagonismo político, emergente da implantação do regime republicano, surgiu a publicação de uma Pastoral colectiva dos prelados portugueses, datada de 24-12-1910, na qual criticam de forma veemente as posições anti-clericais do governo.
Como o bispo do Algarve publicasse, precisamente um ano depois, uma pastoral em que acusava o regime de perseguir a Igreja e de subalternizar os párocos, o governo reagiu através da publicação do decreto de 6-1-1912 condenando-o à pena de desterro para fora da diocese durante dois anos, instaurando-lhe também um processo-crime. O prelado cumpriu o desterro indo viver para a sua casa da Parada, mas ao sair da diocese mandou publicar um protesto dirigido ao Presidente da República, cujo conteúdo reivindicativo pelas asserções impugnativas contra a arbitrariedade do poder temporal, constitui hoje um testemunho teológico bastante importante, sobretudo como documento histórico.
Terminado o desterro, voltou à diocese algarvia em 11-1-1914, sendo aqui recebido com grande júbilo pelos seus párocos e sobretudo pelos crentes pertencentes às classes sociais mais desfavorecidas. Teve a partir daí algumas iniciativas dignas de relevo. Assim, promoveu as comemorações do 1.º centenário do bispo D: Francisco Gomes do Avelar, falecido em Faro a 15-12-1816, em cuja homenagem o prelado mandou reunir entre 8 e 11 de Fevereiro de 1916 um congresso sobre as obras católicas no Algarve, cujos volumes de «Actas» são ainda hoje consideradas como fonte credível para a investigação histórica.
Saliente-se também o facto de D. Barbosa Leão ter publicado um folheto de 45 páginas no qual defendia sem rebuço o programa da União Católica e do Centro Católico Português, que suscitou grande polémica nos arraiais monárquicos, pelo facto do seu autor expender com sinceridade as suas posições políticas, face ao momento de confrontação bélica generalizada, que se vivia por toda a Europa. Havia, por essa razão, que salvar o país e garantir melhores condições de vida para os mais desfavorecidos, ajudando o governo e a República a levar por diante a sua política de reforma social.
Nos onze anos que D. Barbosa Leão esteve à frente da diocese algarvia, realizou uma obra fecunda de melhoramentos regionais, nomeadamente a construção do edifício do Seminário de S. José em Faro e da residência da cúria episcopal, onde viveu o próprio bispo.
Caricatura publicada na imprensa

Em Julho de 1919 foi nomeado Bispo do Porto, partindo de comboio para a cidade Invicta debaixo do aplauso do povo algarvio, assumindo a prelazia daquela diocese a 8-10-1919, onde permaneceu até à sua morte, ocorrida a 21-6-1929.
Quando se começou, em 15-1-1910, a publicar o quinzenário «Boletim do Algarve», órgão da diocese algarvia, foi D. António Barbosa Leão um dos seus mais assíduos colaboradores, publicando nessas colunas as suas Pastorais dirigidas à eclésia algarvia. Nele publicou em 1911 uma “Pastoral ao Clero” a propósito das relações da Igreja com a República, a qual causou grande polémica visto nela produzir afirmações liberais de quase franco republicanismo. Como já dissemos mais acima, essa atitude foi tida por abusiva e considerada de excessiva liberdade de opinião. Por isso recaiu sobre o ilustre prelado a adversidade do governo, que, em 6-1-1912, o penalizou com a proibição de não residir na sua diocese, partindo para a localidade de Parada, sua terra-natal, sobrepujado com o peso da injustiça dos homens.
Seja como for, D. António Barbosa Leão foi um homem inteligente, com inquestionáveis capacidades de escrita e talentos de orador, cuja preladia atravessou o conturbado período histórico da revolução republicana e da consolidação do novo regime. As pastorais que dirigiu ao presbitério algarvio e que publicou na imprensa local, para que todos tivessem conhecimento dos negócios eclesiásticos na região, foram medidas duma exemplar transparência, raramente imitada.
O povo algarvio tinha pelo bispo Barbosa Leão uma grande simpatia e respeito, disso não temos a mínima dúvida. 
Para além de ter fundado o «Boletim do Algarve», precursor do semanário paroquial «Folha do Domingo», que ainda se publica, dirigiu também a revista “Missões de Angola e Congo” e colaborou com o jornal “Novidades”, órgão nacional da Igreja Católica em Portugal. Publicou diversa propaganda religiosa e duas obras fundamentais para o espírito teológico da igreja: “A Largueza do Reino de Deus” e “De que Espírito Somos?”.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Ana Lorjó Tavares de Oliveira

Rua de Santo António, em Faro, 1909
Senhora natural de Faro, onde nasceu em 1851, no preciso ano em que o Liceu Nacional de Faro recebeu da rainha D. Maria II a carta oficial da sua fundação. Não podemos afirmar que Ana Lorjó tivesse sido uma figura marcante na sociedade farense da sua juventude, isto é, no período áureo do chamado Fontismo, que no Algarve deu azo ao surgimento de importantes melhoramentos na organização cultural, social e económica, em particular na cidade em Faro. Lembro como exemplo a vida cultural dos farenses, que nessa época sentiu um enorme impulso no Teatro Lethes, mercê da gerência do Dr. Paulo Cúmano, detentor de avultados meios de fortuna que lhe permitiram manter nesta cidade de província uma casa de espectáculos ao mais alto nível, cuja programação artística não era inferior ao que de melhor se apresentava no São Carlos de Lisboa. No que se refere aos “melhoramentos materiais”, símbolo da política fontista, devemos lembrar que nessa época se melhorou o cais de acostagem, que servia de porto marítimo à cidade, e inaugurou-se a chegada do caminho de ferro, o que significou o fim do isolamento a que o Algarve esteve condenado durante séculos.
Ana Lorjó, segundo nos apercebemos pela imprensa local da época, foi uma cidadã muito respeitada e muito apreciada na sociedade farense, pela sua esmerada educação e cultura intelectual. Escreveu breves apontamentos sobre a programação do Lethes e pequenas notas sociais nos “carnets” da vida local, referindo-se à chegada de certos individualidades que vinham à capital algarvia por razões profissionais ou familiares, e à partida de outras que seguiam para Lisboa, ou até mesmo para o estrangeiro, por razões muito diversas. Assinou também nos periódicos de Faro, breves textos sobre assuntos de particular interesse para as mulheres.
Jardim Manuel Bivar, em Faro, 1919
O que mais a distinguia era o facto de pertencer à família Lorjó Tavares, que marcou posição de relevo no teatro amador, nomeadamente no Lethes e nas reuniões femininas do Clube Farense, espécie de salões de elite, mas ao estilo provinciano, numa tentativa de imitação dos que se realizavam no séc. XIX em Lisboa, nas residências de mulheres notáveis, como Amália Vaz de Carvalho, Ana de Castro Osório, Celina Guimarães e outras.
Foi casada com o general Francisco Palermo de Oliveira, do qual julgo não ter tido descendência. Fixaram residência em Faro onde desfrutavam de grande simpatia social e até de certo prestígio, mercê das origens familiares do esposo, que provinha dos Palermos, que em Faro alcançaram significativos meios de fortuna, e até dispunham de um palacete na Rua de Santo António.
Era irmã do jornalista e escritor teatral José Lorjó Tavares (vide este nome) e tia de Henrique Cortes Ferreira de Sousa, do tenente José Cortes Ferreira de Sousa e de Frederico Ferreira de Sousa, todos eles distintas figuras da sociedade farense do seu tempo.
Sabemos que Ana Lorjó Tavares herdara da família o génio da escrita, e chegou a colaborar com certa regularidade na imprensa algarvia, mas é bastante difícil descortinar em que órgãos em que efectivamente colaborou, visto que o fazia sob a cobertura de enigmáticos pseudónimos. Faleceu com 87 anos em Faro, nos finais de Abril de 1938.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O ensino secundário em Faro no século XIX

 Perguntou-me um aluno como era o ensino secundário em Faro no século XIX. Respondi-lhe que se trata de um assunto algo delicado, porque temos tendência a encará-lo com os olhos e o pensamento actual. Na verdade, não são comparáveis, devido à diferença como se organizava a sociedade e a ordem política. Todavia, é bem certo que a falta de equipamentos escolares e de coordenação entre os diversos níveis de ensino, não facilitaram o acesso e muito menos o prosseguimento do ensino primário para o ensino secundário, encontrando-se nessa circunstância a razão que melhor explica o atraso cultural e o bloqueio socioeconómico da região algarvia nos últimos duzentos anos. A educação até quase aos nossos dias consistia em combater o analfabetismo, pelo que a formação de charneira ao ensino universitário foi descurada até aos anos cinquenta do século XX. O ensino da matemática, é um caso de confrangedor atraso nacional, por ter sido sempre descurado pelo poder central. É essa quanto a mim, uma das razões principais do nosso atraso científico e da nossa falência educativa, em face dos nossos parceiros europeus. Desde o estabelecimento do ensino jesuítico e da implantação da Inquisição, que sempre neste país se deu primazia ao Latim e aos estudos clássicos, em detrimento da Matemática, do experimentalismo (madre das coisas, como dizia Duarte Pacheco Pereira) e da ciência em geral.
Até à implantação definitiva do liberalismo em Portugal, o ensino não era propriamente uma obrigação do Estado. Todavia, antes disso, o Marquês de Pombal criou uma rede de escolas primárias que abarcava todo o país. Eram as chamadas escolas de “aprender a ler, escrever e contar” que, desde então, passaram para a responsabilidade e encargo das autarquias. A maioria delas, sobretudo nas aldeias pobres do interior, encerraram poucos anos depois, reabrindo mais de dois séculos depois, já no tempo da ditadura.
Por isso, o ensino não constituía um encargo público, a não ser o primário, cabendo tradicionalmente à Igreja, ou aos quartéis, a difusão de um ensino mais elevado, e especializado no caso dos militares. Digamos que até à revolução setembrista, em 1836, e ao governo de Passos Manuel, o aparelho educativo encontrava-se desorganizado, desarticulado, e pouco eficiente. Nos conselhos do interior, não existia “a casa da escola”, improvisando-se as instalações paroquiais para esse efeito, e só abriam portas caso houvesse a disponibilidade de um professor, o que era raro. Devemos aos nossos emigrantes no Brasil o benemérito financiamento da construção de escolas destinadas a resgatar do analfabetismo os seus pobres conterrâneos. Nas Beiras, em Trás-os-Montes e, sobretudo, no Minho, conheço dezenas de escolas construídas pelos brasileiros de torna-viagem, verdadeiros mecenas do ensino e da cultura lusíada.

Antiga escola construída em Lagos no âmbito do legado do Conde de Ferreira, para a educação das crianças. Este edifício apresenta uma lápide com a data da sua inauguração, 24 de Março de 1866. Actualmente encontra-se ali instalada a Sociedade Filarmónica Lacobrigense, onde estudam música dezenas de crianças daquela cidade.

Aqui no Algarve, porém, não conheço exemplos semelhantes, a não ser do portuense Conde de Ferreira, que legou a fortuna amealhada para a construção de 90 escolas para os pobres de todo o país. Dessas 90 escolas ainda subsistem 70 edifícios, que conservam a traça original, adaptados a outros fins, geralmente de carácter cultural e educativo. No Algarve só conheci duas escolas, a de Lagos (actual sede da Filarmónica Lacobrigense) e a de Loulé, recentemente demolida.

Postal antigo de Lagos, onde se vê (à esquerda) a antiga escola primária construída com o legado do Conde de Ferreira.  É o mesmo edifício da foto anterior.

No domínio do ensino, a que chamamos hoje secundário, e que no século XIX chamavam preparatório, porque dava acesso à universidade de Coimbra, única existente no país, existiam até ao início da década de 1840, isto é antes da criação do Liceu de Faro (oficialmente instituído em 1851, mas que funcionava a título experimental desde 1846, numas instalações próprias pertencentes ao seminário episcopal), as seguintes “aulas” ou disciplinas, que habilitavam os alunos ao ensino universitário: uma aula de Retórica e outra de Filosofia, ambas em Faro; nove de Latim na cidades e principais vilas. Era tudo o que oficialmente existia. Ora, para entrar na universidade os alunos precisavam de apresentar as suas “habilitações”, isto é, os comprovativos dos seus estudos preparatórios em Latim e Grego, Gramática, Retórica, Filosofia, Aritmética e Geometria, Geografia e História. O aluno só precisava de atestar o seu bom aproveitamento em apenas cinco destas disciplinas preparatórias, sendo que a maioria dos rapazes ao entrar em Coimbra jurava ter frequentado Gramática, Retórica e Filosofia. As outras duas já constituíam uma pré-especialização na vida escolar dos jovens universitários. Segundo os Estatutos da Universidade, o aluno podia matricular-se com a idade mínima de 16 anos, à excepção das Faculdades de Matemática e de Filosofia, cuja fasquia baixava para os 14 anos.
Já que apontei o início da década de quarenta, período marcado pelo Cabralismo, acrescento que o Algarve (já desprovido dos colégios dos jesuítas de Portimão e de Faro, cujos alunos se habilitavam directamente às universidades de Coimbra e de Évora, antes da sua extinção em 1759 por Pombal), apenas possuía 24 escolas de primeiras letras, sediadas nas cidades e vilas, assim como em algumas aldeias, alfabeticamente assim discriminadas: Algoz, Alte, Alvor, Esto, Estombar, Paderne, São Bartolomeu de Messines e São Brás (de Alportel, concelho de Faro) Oficialmente existam também duas escolas femininas de primeiras letras, em Lagos e em Faro, ao que parece ambas pouco frequentadas e com diminutos resultados práticos. No fundo, o aproveitamento geral em todas estas escolas era apontado como escasso e irregular, com parcos equipamentos e reduzida frequência. A razão que as entidades locais, sobretudo autárquicas, apontavam para o insucesso do aparelho educativo era a má remuneração pelo Estado dos professores, que não só auferiam pouco como tinham os seus vencimentos atrasados por longas temporadas. As escolas, como base essencial do progresso, eram no Algarve não só escassas, como eram também improvisadas, desconfortáveis e desprovidas de quaisquer apetrechos didácticos – recursos que tinham de ser providos pela boa vontade e dedicação dos próprios professores. Ora faltando-lhes uma remuneração compatível com a sua função, e nem sequer prestada a tempo e horas, não admira que os professores se sentissem desmotivados, a ponto de abandonarem a escola e o cumprimento das suas funções profissionais.
Planta do castelo de Faro, cuja traça original e os panos de muralha ainda se conservam na íntegralidade histórica. Trata-se de um documento importantíssimo para o estudo da cidade, e para o conhecimento da composição urbana do seu casco histórico.

A única “aula” de Matemática existente no Algarve, funcionava no Regimento de Artilharia de Faro, onde desde há muitas décadas funcionava uma escola especializada no cálculo matemático e na geométrica, destinada em exclusivo à instrução militar. Nela haviam recebido os preciosos ensinamentos da sua especialidade dezenas de jovens, que se distinguiram por todo o país. Nessa escola de matemática dos artilheiros de Faro ensinou, no séc XVIII, o célebre Coronel Theodozio da Silva Rebocho, cujos discípulos tiveram altas classificações, tendo alguns deles feito exame de admissão à Academia da Marinha, onde entraram facilmente e com distinção.
Edifício do Paço Episcopal de Faro, e ao seu lado direito o palacete onde se instalou a Câmara Municipal. Para o lado esquerdo do Paço encontra-se o edifício do antigo Seminário de São José, onde funcionou provisoriamente o primeiro Liceu de Faro em 1846 até 1849, passando depois para outras instalações na Rua do Município. Na foto, vê-se os antigos estudantes do Liceu, trajados com capa e batina, privilégio que lhes foi concedido pelos camaradas da Universidade de Coimbra.
Dessa plêiade de instruendos da escola de Faro merece que aqui se preste o devido destaque à memória do lente da aula do Regimento de Tavira, o brigadeiro do corpo de engenheiros, José Sande de Vasconcellos, e os seus discípulos, João Stuart, Domingos António de Castro, Jacinto Alexandre, José Justino Henrique e Francisco Xavier dos Reis, os quais compunham a equipa que elaborou as primorosas colecções de plantas das praças e fortalezas da costa do Algarve, que se encontram depositadas na Biblioteca Nacional e no Arquivo Histórico da Marinha.

domingo, 14 de março de 2021

Acerca do Dia da Mulher e da ALGARVIANA – breve esclarecimento

O meu jovem amigo Tomás Severino Pinto Bravo, lembrou-se de comemorar o Dia da Mulher transcrevendo no Facebook um breve trecho da autoria do meu saudoso amigo Dr. Mário Lyster Franco, extraído de uma conferência que aquele brilhante intelectual algarvio pronunciou em diferentes certames literários, sob a epígrafe de «Mulheres e Jogos Florais».
Como estou directamente ligado aos últimos anos de vida desse emérito vulto da cultura algarvia, não posso deixar de acrescentar algumas palavras que justificam a publicação da referida conferência, a cuja edição estive ligado, e que, aliás, constituiu o derradeiro título da sua incomparável obra de escritor e jornalista.
Capa do opúsculo que editei em 1983 sob o 
sugestivo título de Mulheres e Jogos Florais
uma verdadeira homenagem à mulher, na 
figura mítica de Clemência Isaura, que viveu
no séc. XIV, e que passa por ser a inspiradora
dos primeiros certames literários da poesia
trovadoresca.

Como é do conhecimento público, trabalhei com o Dr. Mário Lyster Franco, entre 1980 e 1984, na actualização e edição dessa obra mestra da cultura algarvia, que tem por título «ALGARVIANA – Subsídios para uma bibliografia do Algarve e dos autores algarvios». Compareci diariamente, durante quatro anos, na «Casa do Cercado» em Faro, residência particular do Dr. Lyster Franco, onde procedi à redação de centenas de biobibliografias respeitantes aos autores referenciados para figurarem na referida obra. As referências eram pequenos verbetes, em forma de postal, onde constavam o nome do autor e a indicação de um ou mais livros, ignorando-se tudo o resto. E o meu trabalho consistia na pesquisa e redacção de todos os elementos necessários à elaboração do texto final. O autor, Dr. Mário Lyster Franco, então octogenário, havia parado há muitos anos com essa tarefa, devido aos afazeres com a publicação do seu jornal «Correio do Sul», o mais completo e mais cultural órgão de informação que se publicou a sul do Tejo. Além disso, um galopante glaucoma tinha-o deixado quase cego, razão pela qual tinha cessado toda a sua actividade literária e intelectual.
Nesse afã diário empreguei todas as minhas forças para refazer e actualizar a obra, por forma a que se editasse ainda em vida do seu autor. E aqui revelo que, ao contrário da sua vontade, não permiti que o meu nome figurasse ao lado do seu, como co-autor. Tive esse respeito e essa humildade. Dei o melhor de mim, e posso dizer que a obra nunca se teria iniciado nem publicado (ainda que apenas o 1º volume), sem o meu esforço. Escrevi mais de três centenas de biografias e apreciações críticas das obras dos autores, para integrarem os dois primeiros volumes - dos seis em que decidi repartir a obra final. Creio que hoje, a realidade editorial alterou-se completamente, com o surgimento de inúmeros autores algarvios, para além das obras, que dizendo respeito ao Algarve, terão de ser igualmente integradas na «Algarviana», pelo que a dimensão dessa obra, dos seis volumes que inicialmente julgava compreender, deverá estender-se pelo menos por mais dois, num total superior a três mil páginas.
No autógrafo que o Dr. Mário Lyster Franco 
me dedicou pode ler-se: «Ao chato do Mes-
quita esta chatice feita para chatear os outros, 
of(erece) o chatarrão-mór Mário Lyster Fran-
co. 28/VIII/83 A. D. [Anno Domini] 
Mas, o que agora me trás a terreiro é a justificação da publicação do opúsculo «Mulheres e Jogos Florais», um texto de excepcional beleza literária, o último da lavra do meu saudoso amigo Mário Lyster Franco.
Descobri o texto num amontoado de papeis, constituído por originais manuscritos e dactilografados, respeitantes a várias das suas conferências, pronunciadas no Algarve e em Lisboa. Entre elas estava precisamente este «Mulheres e Jogos Florais», que o Dr. Lyster Franco havia pronunciado nas cerimónias que encerravam esses certames literários, na Praia da Rocha, em Quarteira, e julgo que também em Armação de Pera. Depois de ler o texto insisti para que o publicasse, ao que recusou terminantemente. Mas eu não desistia, até porque o via a morrer sem que nenhuma alegria lhe proporcionasse motivação e força para se agarrar à vida. Nessa altura o então Presidente da Câmara de Faro, havia proibido a continuação da edição da Algarviana, o que até hoje se mantém. Para contrariar os que o condenavam ao silêncio e ao ostracismo, decidi editar na Litográfica do Sul, o texto final desta brilhante conferência. Para isso contei com a boa vontade do director das oficinas daquela empresa, que era um homem de grande sensibilidade cultural, chefe dos bombeiros locais e amante das tradições algarvias, de nome Tenório, figura que certamente os vilarealenses ainda se lembram. Fez-me um preço de amigos (doze contos por 300 exemplares), e o opúsculo sai a público em 1983, como a última produção do Dr. Mário Lyster Franco. É de facto um texto brilhante, dedicado às mulheres, à poesia e sobretudo ao amor. Infelizmente não teve a divulgação que merecia, nem circulou no mercado livreiro por falta de interesse, visto que nessa altura, tal como hoje, grassava entre os intelectuais uma má vontade, e até uma injusta ridicularização, sobre a importância dos Jogos Florais no incremento da nossa literatura e na descoberta de novos talentos.
Esta é a factura que a Litográfica do Sul me passou no
valor 12 mil escudos, respeitante aos custos de edição
dos 300 exemplares do livro Mulheres e JogosFlorais.
Como se vê foi editado em 24 de Maio de 1983, e fui
 eu quem pagou a edição.
Infelizmente, e apesar de ter patrocinado a sua edição, não trouxe comigo nenhum exemplar, a não ser o que o meu querido amigo Dr. Mário Lyster Franco teve a amabilidade de autografar, de uma forma irónica, mas verdadeira. Fui um “chato” na forma como insisti na sua edição, que serviu para chatear os que o tinham condenado ao silêncio e ao ostracismo, sobretudo o presidente da Câmara de Faro. Os políticos são sempre assim, traiçoeiros e traidores.
A quase totalidade dos exemplares deste opúsculo ficaram na «Casa do Cercado», não sabendo qual o destino que tiveram. A casa é hoje uma triste ruína. O seu espólio artístico e museológico, de altíssimo valor, presumo que a família vendeu aos melhores antiquários de Lisboa. Só a pinacoteca da família, constituída por vários quadros da autoria do pai, Carlos Augusto Lyster Franco, a que se juntavam muitos outros pintados pelos seus antigos colegas das Belas Artes, que com o decorrer dos anos se tornaram famosos artistas, valeria hoje dois ou três milhões de euros. E se não fosse eu, com a ajuda do Horácio Cavaco, então presidente da RTA, até a «Algarviana» teria sido vendida aos alfarrabistas da capital, como aliás aconteceu com milhares de outros livros, que faziam parte do espólio herdado não só do pai, que era também um cuidadoso bibliófilo, como também do seu sogro, o Dr. Rodrigues Davim, cuja avultada biblioteca foi repartida pelas suas duas filhas, sendo uma delas a D. Silvina casado com o Dr. Mário Lyster Franco. Esta é que é a mais pura das verdades.